Maior nome do moderno teatro brasileiro, o pernambucano Nelson Rodrigues foi com a família ainda criança morar no Rio de Janeiro. Embora algumas das peças que escreveu tenham sido dirigidas por dramaturgos pernambucanos – Antonio Cadengue marcou época, nos anos 1980, com uma inesquecível versão de Senhora dos Afogados –, nenhum cineasta local havia ousado adaptá-lo para o cinema. Finalmente, o tabu foi quebrado com o recifense – e olindense de coração – Jura Capela, que mostra esta semana, no Festival do Rio, na Mostra Novos Rumos, sua versão de A Serpente, o último texto teatral escrito por Nelson Rodrigues, em 1978.
Esta, porém, não é única novidade que surge com a adaptação. O grande achado de Jura é que o filme traz, em dose dupla, interpretando as personagens principais, as irmãs Lígia e Guida, ninguém menos que Lucélia Santos, a atriz símbolo de Nelson Rodrigues no cinema. Há 35 anos, Lucélia, que já era famosa no Brasil, em virtude do sucesso da telenovela Escrava Isaura, exibida em 1976 pela TV Globo, foi a estrela de três filmes baseados nas obras do autor: Álbum de Família, Bonitinha, mas Ordinária e Engraçadinha.
A entrada de Lucélia Santos em A Serpente foi uma grande coincidência do destino. Jura conta que estava conversando com Matheus Nachtergaele, no Rio de Janeiro, onde mora atualmente, quando o ator disse que havia gostado de Filme Jardim Atlântico, o primeiro longa do diretor. “Matheus queria saber o que eu estava fazendo e, quando eu disse que era uma adaptação de A Serpente, ele me interrompeu logo. ‘Porra, não vai me chamar?’, perguntou Matheus. ‘Tu mandando essa, só tenho que agradecer’”, retrucou Jura.
Na conversa seguinte, Jura ficou ainda mais surpreso quando Matheus disse que se tornou ator por causa de Lucélia. “Ele disse que a primeira vez que foi ao cinema, levado pelo pai, foi para ver o filme Luz del Fuego, com Lucélia”, recorda. Assim, todo o bate-papo entre os dois foi sobre a atriz. Jura lembra que Nelson Rodrigues considerava Lucélia “uma força da natureza”. Matheus, enfim, acabou fazendo a pergunta que não queria calar: “Por que não chamar a própria Lucélia?”, indagou para Jura. No primeiro encontro entre os três, Matheus disse para a atriz que só virou ator por causa dela. “Ele disse que Lucélia tinha a estatura igual a dele e que por isso também podia ser ator. Ela dava altas gargalhadas”, confidencia o cineasta.
Última das 17 peças escritas por Nelson Rodrigues, A Serpente tem apenas uma ato. Na versão de Jura Capela, o filme é dividido em oito, com cada um deles abertos com frases que Nelson escreveu para as histórias de A Vida Como Ela é. Em A Serpente, a trama é exposta com simplicidade, mas amparada na costumeira crueza do dramaturgo, como o caso da história das irmãs Lígia e Guida (Lucélia), que vivem juntas com seus maridos na mesma casa. O drama é a infelicidade de Guida: depois de um ano casada com Décio (no filme, Silvio Restiffe), Lígia oferece o marido Paulo (Nachtergaele) para dormir com a irmã, que pensa em suicídio. O que se segue, enfim, é a pura tragédia de classe média eternizada por Nelson.
Decidido a permanecer fiel ao texto do dramaturgo, mas sem seguir as pegadas das adaptações anteriores, Jura Capela procurou outros caminhos para dar uma nova feição cinematográfica A Serpente. Filmado em preto e branco, em Barra do Piraí, no interior do Rio, o filme tem uma indisfarçável filiação com o cinema noir americano dos anos 1940, a partir da contrastada fotografia de Pablo Baião e uma não menos competente trilha sonora composta pelos mangue boys Fábio Trummer e Pupilo. A cena de abertura é de um impacto absoluto: do alto do céu, a câmera vai descendo, lentamente, até o espectador perceber, em meio a um cenário de grande destruição, uma mulher andando no meio da lama, com um vestido de cauda longa.
“Fomos correndo filmar em Bento Rodrigues, em Minas Gerais, uma das cidades atingidas pelo desastre de Mariana, quando a barragem do Fundão veio abaixo. A gente foi na Samarco e eles liberaram a filmagem. Usamos um drone, uma única vez, porque a imagem está virando um lugar comum. Só que esta ferida aberta do Brasil precisava ser vista”, afirma Jura.
Além de Matheus Nachtergaele, Lucélia Ramos e Silvio Restiffe, A Serpente ainda tem a participação da paulista Céllia Nascimento, que canta uma versão de Dora, de Dorival Caymmi. Produzido pela Jura Filmes, que tem sede em Peixinhos, em Olinda, e a carioca Oceano Cinematográfico, de Elaine Soares Azevedo, o filme também tem a participação do Canal Brasil.