Talvez nunca tenha sido filmado um Rio de Janeiro tão frio quanto o captado pelas lentes da veterana francesa Hélene Louvart, escolhida por Karim Aïnouz para fotografar A Vida Invisível, vencedor da mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes e nosso possível representante ao Oscar 2020, com pré-estreias já neste fim de semana. Baseado livremente no livro de Martha Batalha, o filme usa a melancolia, uma das mais potentes ferramentas do melodrama, como principal tônica das mais de duas horasde projeção. É nesse caminho, recusando constantemente uma visceralidade dramática, que sua narrativa costura um retrato de negações: à escolha, aos afetos, ao futuro. Todas enraizadas em cerceadoras estruturas familiares patriarcais. É um perverso silenciamento que encontra vazão na própria linguagem, fria e pouco aberta. E que faz da obra uma das mais sensíveis preciosidades do ano.
É o Rio de Janeiro dos anos 1950 que abriga o começo de tudo. A boemia carioca cantada por Nelson Gonçalves parece em boa parte ser uma realidade paralela, quando entramos na rotina das irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), caseira e regrada. É no grande ato subversivo de dar uma saída de casa que a realidade enclausuradora começa a operar. Em suas fugidinhas para a noite, Guida se apaixona por um marinheiro grego e decide fugir do país com o amado, escandalizando seu pai. Os anos se passam, sua irmã se casa e ela decide retornar ao país, grávida e sozinha. A família, subserviente ao patriarca, não a aceita de volta e ainda mente sobre o paradeiro da irmã. Separadas, ambas vão vivendo suas novas vidas permeadas pela
saudade uma da outra e pelo desejo do encontro.
Se os primeiro minutos se passam na natureza, com o respiro ao ar-livre, mesmo que já sob um tom agridoce, o contraste logo vem nos espaços das casas e apartamentos. São esses os lugares para onde a vida de ambas é empurrada. A vivência de Eurídice no mundo é mais de cômodos do que rua. Guida, a mais rebelde, ainda tenta dar vazão à sua inconformação perante essa restrição de uma vida entre quatro paredes. A fotografia de Louvart faz questão de pontuar que estamos vendo o mundo por um ponto de vista emoldurado por portas e algumas janelas. É uma sutil claustrofobia que vai sendo plantada com o dia a dia, sob a roupagem dos cuidados: da casa, das crianças e dos adultos. Mesmo vivendo duas realidades bem distintas, é nesse enclausuramento que estão os paralelos entre as irmãs.
Quem também é um agente do enclausuramento é o tempo. E a montagem da belga Heike Parpiles faz questão de não deixar os saltos temporais muito marcados, quase como um comentário sobre como aquela melancolia e dor são resistentes ao passar dos anos. Assim como também persiste, através das gerações, o comportamento dos homens da família em negar liberdades e fazer suas escolhas sempre prevalecer. O bronco pai português Manuel (António Fonseca) pode até ser o primeiro a limar as potencialidades das filhas, mas assim também o faz Antenor, mesmo em seus trejeitos mais patéticos, potencializados pela performance de Gregório Duvivier, se prestando ao papel do homem ridicularizado, mas também violento.
A Vida Invisível é povoado por essas excelentes entregas de seus atores, Bárbara Santos como a cativante Filomena ou Flávia Gusmão com a serenidade compulsória da matriarca. Agora, a força de Duarte e Stockler, principalmente na forma como incorporam as marcas do tempo, é deslumbrante. A primeira começa com uma Eurídice de certa forma tensionada, com ombros curvados, mas com um olhar de certa pureza, de uma jovem que ainda vê um mundo com alguma abertura para seus sonhos.
Logo, com o passar dos eventos, vai encontrando um porte mais altivo e seus olhos se tornam mais pesados, consciente do lugar que lhe é imposto. Já a Guida de Stockler expressa uma bem construída reclusão de sua energia expansiva e festeira para um dureza de igual aceitação da realidade que angustia sua vida.
Para coroar esse elenco, entra em cena a força da natureza que é Fernanda Montenegro. Em alguns poucos minutos e sem muitas palavras, a veterana puxa para si a responsabilidade de amarrar toda a carga emocional do longa. Só precisa de alguns olhares para entregar uma das mais comoventes atuações do nosso cinema. Acontece algo muito inexplicável por debaixo dos olhos daquela mulher. Tudo o que era preciso para arrematar a grande obra que é A Vida Invisível.