Não terá sido a primeira vez que um amante volta do além para imprimir novas doses de suores e secreções na ficção brasileira. Basta lembrar da folha de serviços prestados pelo personagem Vadinho, de Jorge Amado, em Dona Flor e seus dois maridos. Mas este é o primeiro momento em que encarnados e defuntos gozam do mesmo leito na TV brasileira banhados em sotaques e genéticas tão pernambucanos.
Com estreia marcada para a próxima sexta, a minissérie Amorteamo tem dramaturgia desenvolvida pelo pernambucano Newton Moreno em parceria com o carioca Claudio Paiva. O texto dá conta de dois triângulos amorosos – cada um deles com um par sobrenatural –, ambientados numa Recife de generoso realismo fantástico no começo do século 20. Com supervisão do recifense Guel Arraes responsável por capítulos importantes da linha evolutiva da TV contemporânea, a série tem direção geral de Flavia Lacerda. Com a trama, a garota crescida no bairro de Apipucos assina uma espécie de rito de passagem para a maioridade profissional na empresa que responde, ainda, pela maior indústria de entrenimento na América Latina.
Apesar de crises na audiência das novelas (Babilônia está nadando ainda para sair da lama de apenas 26 anos de audiência e, como antecessoras, pode ser encurtada), a Globo não brinca com o que cria para a diversão nos lares brasileiros. Fechou 2014 com um faturamento de R$ 16 bi – um crescimento de 9,7% sobre o ano anterior. Quase metade desse faturamento, estima-se, vem da teledramaturgia. Apenas de atores contratados, a folha soma com 800 profissionais. Outros 800 costumam estar em revezamento em contratos temporários.
Dona de um equilíbrio e delicadeza raros num meio de prazos apertados e objetivos largássemos, Flávia trata a direção de uma série feita com requintes de cinema e exigências de TV com a mesma tranqüilidade que dispensaria a um curta feito com amigos. Apenas o volume de trabalho é infinitamente maior. Com a série toda gravada, ela se entrerra pelas madrugadas para editar o material - passamos mais de uma semana tentando uma brecha no expediente para esta entrevista. Ela, aliás, ameniza o fato de que, agora, está assinando sua primeira direção.
“Essa é a primeira vez em que meu nome aparece sozinho”, diz Flávia. “Mas eu sempre ia sozinha para os sets”, continua, entre risos. Acolhida profisisonalmente na emissora pelo próprio Guel e João Falcão, Flávia tem trabalhado, nos últimos dez anos, em programas assinados pelos dois pernambucanos já veteranos. “Eu também já não sou tão novinha”. Com Falcão, por exemplo, dirigiu o divertíssimo seriado Louco por elas. “Ele assinava a direção comigo. Mas eu ia sozinha pro set. Porque tanto eu me metia no texto dele, como ele se metia na direção, um trabalho sempre em parceria”, diz ela.
Como o próprio Guel não pôde dirigir a trama, passou a bola para Flavia. Amigo de longa data da pernambucana, ele, contudo, ouviu ainda a orientação de Denise Sarraceni, a primeira diretora da casa a chamar Flávia para a direção de uma novela, para a decisão. Em 2005, ela divida com outros dois jovens diretores a direção de Belíssima, uma trama das oito com Fernanda Montenegro no papel de uma vilã protagonista. Sarraceni era a chefe do grupo.
Foi, aliás, um encontro relativamente fortuito com Guel que a levou para o Rio - e para a Globo. Recém-formada numa faculdade de cinema na França, Flavia Lacerda trabalhava em produtoras do Recife quando foi solicitada a fazer uma pesquisa nos arquivos da Fundação Joaquim Nabuco para a produção de O auto da compadecida, a minissérie de quatro capítulos de 1999. “Pedi a ele para fazer qualquer coisa, até servir cafezinho no set. E ele me convidou”, lembra. Com a proposta, Flavia estreou como segunda assistente de direção na série que, reeditada como filme, acumulou mais de dois milhões de espectadores - imprimindo os atores Matheus Nachtergaele e Selton Melo com as encarnações definitivas de João Grilo e Xicó no imaginário midiático nacional. Do primeiro “cafezinho” até agora, a diretora nunca mais parou.
RECIFE
/>Apesar do texto assinado por Newton Moreno, a série não tem, segundo a diretora, “nada a ver” com o livro Assombrações do Recife Velho, clássico de Gilberto Freyre sobre os mitos sobrenaturais da cidade adaptada para o teatro com Moreno. “Havia o projeto de adaptar o livro. A Globo comprou os direitos, mas ainda não usou. Não haverá nada do livro. A única coisa em comum é o Recife sobrenatural”, ela diz, durante um “cafezinho” antes de entrar na ilha de edição - de onde não tem hora para sair e onde sabe o que vai encontrar.
Ao contrário da novelas cujas tramas mudam conforme o humor da audiência, a série é uma obra fechada. “Tudo está definido”, diz ela, que já sabe também onde vai tomar suas próximas xícaras de café. Flavia Lacerda está escalada para as próximas séries que Guel Arraes desenvolve para a Globo.