Carta de Jorge Amado a Tania Carneiro Leão

Enviada pouco depois da morte do autor, carta virou prefácio de Livro geral, de Carlos Pena Filho
Do JC Online
Publicado em 05/08/2012 às 6:21


Carlinhos

Não, não desejo ir ao Recife, nem mesmo para chorar com Tania e Otília, para fitar em silêncio a face de Eufrásio, para acariciar a cabeça de Clarinha. Nem mesmo para sentar-me com os amigos Rui e Paulo, com Caio e Zé Conde, e recordar palavras tuas, momentos, histórias, gargalhadas. Nem mesmo para reencontrar-te nas pontes sobre o Capibaribe, no fundo da livraria, no bar, na casa do mestre Gilberto. Porque ainda não pude aceitar a ideia de que já não estás, porque ainda não pude conformar-me com a injustiça de tua morte, porque não posso ainda conceber a tua cidade sem o seu poeta magro e angélico. Ah! Carlinhos, tu eras contra a injustiça e a tristeza, contra a desolação e o homem solitário. Como ver tua cidade, que aprendi a amar em tua companhia, desolada e em luto? Não, Carlinhos, não irei, e tu compreenderás. Não irias também, tenho certeza. Sem ti, já não será mais a mesma, essa cidade do Recife. Eras o seu poeta, o irmão mais moço de Joaquim Cardozo, o amigo do general e do pobre da esquina, da aeromoça e do folião do Carnaval, do prefeito e da rainha do maracatu, do peta Ascenso, do compositor Capiba, do pintor Brennand e do fabuloso Ariano, do ateu e do católico, do protestante e do espírita, do rico e do pobre, era a solta fantasia e a densa realidade, o ar, achuva e o sol dessa cidade, sue cotidiano de beleza, eras o seu poeta. Foi preciso que faltasses assim, brusca terrivelmente, para que compreendessem que eras o dono da cidade, que eras a cidade, sua infinita e complexa realidade. Porque eras simples como o pão e profundo como a água do rio, estavas plantado no chão da tua gente como certas plantas trepadeiras aparentemente frágeis, porém mais resistentes e permanentes que as grandes árvores. Eras a rosa e o musgo, a fruta sumarenta e o cacto de espinhos. Tua flor tinha riso e sangue, levavas nos ombros de toda fragilidade a dor e esperança de teu povo, sua solidão, o cangaço e a multidão no frevo.

Foste tão tua gente que muito tempo vai passar antes que surja outro poeta assim, para ser tão amado por seu povo.

Eras frágil de carne e osso, tão leve na balança, um vento mais forte podia te arrastar como uma folha de árvore ou um pedaço roto de poema. Por isso, talvez, sempre me deste a ideia de um anjo por amor perdido nas ruas do Recife. Mas como eras denso de vida por dentro, como eras tão homem e tão povo, tão pernambucano e universal! Como sabia em tão frágil estrutura tanta esperança do homem, cangaceiro, todo desolado sertão, toda a vívida cidade e mais a doçura da amizade, da mais terna, da doce amizade? Eras talvez um anjo, eras sem dúvida um anjo extraviado, pois só assim se explica fosse homem tão completo, poesia tão solitária.

Teu clima era o amor, a amizade, a ternura, o dar-se a cada instante, a preocupação pelos outros, eras o cantor de todos os que necessitam e se erguiam para conseguir. Nunca foste capaz de ódio; tuas raivas e tuas brigas eram ainda fruto de muito amor e não duravam, logo voltavam a ser ternura.

Aqui te vejo, nessa cidade da Bahia, que Odorico, Cícero, o príncipe Eduardo e eu te ensinamos nos dias alegres, quando transportaste para as ruas mágicas o teu mistério. Não aceito a tua falta, tua ausênciam pois se ainda ontem ríamos aqui, na Reitoria e no restaurante do mercado, na casa de Odorico e na ladeira , ouvindo o Governador dizer teus versos e vendo Moisés e encher de vinho o teu copo. Não, não irei ao Recife. Aqui posso pensar em  ti como se apenas houvesses retornado à tua cidade, depois de visitar minha cidade.

Aqui posso imaginar que estou à tua espera para outros dias alegres de coração leve e riso alto.

Foi injustiça demais, Carlinhos. Quando chegamos a certa idade, vamos indo pela vinda com os vivos, mas também com os nossos mortos, aqueles que vão faltando. Carregamos nossos defuntos, e eles fazem parte de nossa vida, vão conosco. Em geral, porém, os amigos que partem são os que já deram tudo ou quase tudo de si, já completaram seu trabalho, cantaram as estrofes de seu canto. Não era ainda a hora de partires, ainda era cedo demais. Como será agora a noite do Recife se já não estás para ir buscar aurora no fundo do rio e trazê-la para as pontes e para o casario? É difícil, quase impossível, tomar de tua morte e carregá-la nos ombros.

Queria buscar tua palavra e escrevê-la aqui, entregá-la a Clarinha em nome de Paloma e João, a Tania, em nome de Zélia. Foste amor e solidão da terra, cidade e sertão, dor e esperança. Mas havia uma atmosfera tua, um clima, um ar na tua angélica humanidade. Era uma atmosfera azul, quase infantil e mágica. Azul, Carlinhos, esse mistério que tu foste. Azul, Carlinhos, tua morte de sangue coagulado, azul na tua definitiva permanência de poeta, tão terrível azul este momento.

Jorge Amado

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