“Minha história estará escrita em meus ossos”, afirma o personagem principal de Nossos ossos, primeiro romance do escritor pernambucano Marcelino Freire, radicado em São Paulo. Contista renomado, o autor se arriscou pela primeira vez no reino das narrativas mais longas, como se, assim como a figura que criou, precisasse mergulhar ainda mais na sua vida, corpo, pele e até ossada para sustentar o relato. Foi um teste duro para o dono de uma prosa marcada pelo ritmo, pela brevidade – chegou a organizar uma coletânea de microcontos, Os cem menores contos do século – e pela criação de múltiplas vozes para seus personagens.
O trabalho, segundo Marcelino, autor de obras como Angu de sangue (2000) e Contos negreiros (2005), pode ser comparado à conclusão de uma maratona. “Estou feliz com a ‘performance’ do romance. Eu não tinha mesmo como fazê-lo antes de todos os meus livros de contos. Meus contos me trouxeram até o romance”, aponta, em entrevista ao JC. “Nos contos, eu já gritei bastante. Nos contos, eu soltava o grito, esperneava... Aprendi, com o romance (que chamo de ‘prosa longa’), a gritar mais espalhado, a não ser estridente, digamos. Continua lá nesse livro a minha agonia, mas é uma agonia agora menos agonizante, entende?”.
O livro é todo composto em uma só voz, a do dramaturgo pernambucano Heleno de Gusmão. Chocado com o assassinato de seu amante, um michê, ele decide buscar informações sobre a sua origem para devolver o corpo do garoto à família. A decisão o leva a encarar o próprio passado, desde a saída do Recife como um desconhecido até a chegada na difícil São Paulo.
Para criar o romance, a assumida escrita de “ouvido” de Marcelino precisou ser aprimorada. “Saí do improviso solo para uma sinfonia coletiva”, conta. “Dizem sempre que eu escrevo com rimas. E eu sempre defendo que eu escrevo com ‘ímãs’. As minhas palavras ficam procurando companhia o tempo inteiro”.
SUBJETIVO
É um dos relatos mais pessoais do escritor de Sertânia, que, como seu personagem, deixou Pernambuco para ir morar em São Paulo em 1991. Nem tudo é baseado na sua vida, mas é sempre fruto da sua experiência – direta ou indireta. “Quando a gente escuta uma coisa, a gente já está escutando à nossa maneira. Muitas cenas de ‘pegação’ no romance, por exemplo, aconteceram com amigos meus. Não estou aqui tirando o corpo fora, hein? Só quero dizer que, quando eu ouvia os relatos dos meus amigos, esses relatos passavam a ser meus”, explica o autor. “Nesse sentido, quando dizem que meu livro é autobiográfico, eu não nego. Ele é também autopornográfico. As putarias podem não ter acontecido comigo, mas reverberaram em mim...”.
Assim como Heleno, Marcelino foi para São Paulo atrás de um amor. “E me fodi muito nessa cidade igual ao personagem do meu livro. Senti solidão, me encontrei desamparado. Mas fui à luta... É claro que no livro eu exagero na carga dramática”, revela. A cidade, junto com a capital pernambucana, provoca sentimentos fortes no autor. “São Paulo é uma cidade assim, exacerbada. O sertão é assim, exacerbado. Meu coração é assim, exacerbado. Gosto desses exageros. Recife, para mim, é uma cidade aguda, febril, cheia de sujidades. Recife é uma cidade dramática. Tudo é extremo no Recife”, declara-se.
Se no livro Marcelino parece confessar, pela voz da sua criação, Heleno, que inventou todas as fortes figuras femininas dos seus livros em homenagem a sua mãe, Nossos ossos é sua primeira história dedicada ao pai. A partir da discrição e do silêncio paterno, fez seu livro mais masculino. “Meu pai era um homem muito honesto e digno. Mas matava gatos e pombos. O coração dele não era desse jeito. Ele matava sem pensar. Eu escrevi o livro para que perdoem o meu pai”, confessa.
Os próximos caminhos do livro já estão iniciados. Marcelino já está cuidando da adaptação de Nossos ossos para o teatro, para ser encenado pelo Coletivo Angu de Teatro, e a obra vai virar audiolivro no começo do ano vem. Contratos para traduções estão acertados com editoras da Argentina, da França e da Itália. O período, agora, é de férias, ainda sem previsão exata de uma volta à ficção – ele cogita um livro novo para daqui a dois anos, mas já sabe o gênero escolhido. “Adorei fazer romance. Encontrei o jeito, o estímulo, a coragem. Não perderei mais a corrida... Ganhei fôlego, definitivamente, para outras maratonas”, antecipa o agora romancista Marcelino.