Para escrever seu último romance, Estive Lá Fora, o escritor cearense radicado em Pernambuco Ronaldo Correia de Brito quase adoeceu, devido ao mergulho intenso no personagem e nas próprias memórias da chegada ao Recife em meio à ditadura militar. Há três anos, no entanto, vinha tecendo o que chama de seu livro mais silencioso, sob influência da doença e morte da sua mãe e do seu pai. Nos 12 contos que reúne em O Amor das Sombras, lançado agora pela Alfaguara, é possível ver um universo literário que flerta com o impulso de recordar o passado, apesar de precisar de lidar com a maldição da memória.
Com lançamento no Recife já marcado para o dia 31 deste mês, na Livraria Cultura do Paço Alfândega, o volume é, como Ronaldo descreve, uma “declaração da amor às sombras”. O primeiro conto começa com uma frase que é poderosa para se entender o livro: “– Não acharam os corpos”. Ali está claro que a morte já aconteceu, mas o cadáver ainda precisa ser encontrado. Procurar a ruína, o registro do que já se foi, é um dos motores das várias narrativas que compõem o volume.
São histórias dosadas, com as descrições densas e melancólicas que marcam a prosa de Ronaldo. “As 12 narrativas tem títulos substantivos. Todas elas giram em torno de histórias de famílias, a marca mais forte da minha literatura, presente em Faca e em Galileia. Retomo outro tema também da minha obra, as ruínas”, conta o autor. “Estou sempre falando de mundo afundados, tanto a partir de mundos físicos como de pessoas indo embora. Há muitos velhos nessas histórias, pessoas com Alzheimer, porque, quando fiz esse livro, eu estive acompanhando minha mãe, que estava morrendo, e meu pai, que começou a morrer quando a obra estava sendo concluída. De uma certa maneira, é um livro sobre o meu luto. E luto se vive em silêncio.”
Foram três anos criando as histórias – três delas já haviam sido publicadas em coletâneas (Helicópteros na Granta e Magarefe no livro Entre as Quatro Linhas) ou de forma isolada (Atlântico, em edição da Mariposa Cartonera e da Cesárea) e foram bastante reescritas para a obra, ressalta Ronaldo. O ritmo das narrativas é espesso e convida o leitor a penetrar nas neblinas das memórias trágicas e dos finais nada felizes. Não é um simples reencontro com o passado, é bom avisar: para Ronaldo, interessa justamente o que não morre como lembrança, o que insiste em retornar como obsessão, desejo ou simbolismo.
“Eu fui criado até um certa idade dentro de um mundo antigo, arcaico, quase medieval. De repente, tudo isso entra em decadência, em ruína, e eu sou jogado em um outro mundo. Mas eu não quero perder a perspectiva daquele universo mítico, porque eu acho que, se eu perdê-la, eu mesmo posso me perder”, explica. “E também não posso deixar de ver, viver e sentir esse mundo em que estou inserido. Meus personagens são todos criados com esse drama. Eles estão sempre tentando um equilíbrio entre o mítico e o pós-moderno. Sempre há essa angústia, de olhar para trás e ver ruínas e de olhar para frente e também ver ruínas.”
O conflito aparece explicitamente e sutilmente. Em Bilhar, o personagem José afirma: “Eu temia que a literatura não conseguisse responder a minhas perguntas sobre o mundo. Ele se transformava a cada hora e na família continuávamos aferrados aos mitos, à tradição e ao sobrenatural”. E, além do universo da tradição das pequenas cidades do Crato, que aparece em boa parte dos contos, há também um retrato da velhice e da doença que se reitera na obra. Uma mulher sofre com o Alzheimer em Força e um homem perdeu a memória em um acidente em Perfeição – são histórias mais urbanas e contemporâneas, mas que trazem o mesmo dilema da opção pela tragédia do passado ou pela crueldade do presente.
As suas próprias experiências são retomadas em seus personagens e até na sua própria voz, no conto que encerra o livro, uma espécie de ensaio-memorialístico. Mas Ronaldo acrescenta a esses dados desastres e personagens que conheceu através da sua outra atividade, a medicina. “Eu tenho a sorte e a coragem de ouvir pessoas que normalmente não falam, que não costumam ter direito a falar. Elas sempre me procuram, e eu sempre escuto”, confessa o escritor. A isso somam-se as imagens poderosas, como a de uma barragem sendo esvaziada em plena seca ou uma boiada atravessando a cidade, rumo ao frigorífico.
Ainda contaminado por essas imagens, cheiros e figuras, Ronaldo se prepara para sair do silêncio: além do lançamento no Recife, vai participar da Bienal do Rio de Janeiro. Seu próximo livro deve ser um romance, escrito com uma voz feminina. Por enquanto, ele vai ser acompanhado por essas sombras que o cercaram ao longo de três anos, ainda que em histórias muito diferentes. Os contos do livro, afinal, parecem compreender que só narrativas assim, soturnas, podem mergulhar na angústia que fascina o autor. Ele mesmo descreve suas histórias como espécies de tragédias, porque o tempo e as obsessões sempre levam as pessoas a situações em retorno. “Minhas narrativas não se fecham, e é por isso que meus personagens sempre terminam meio perplexos”, define. Não é por acaso que, para melhor contemplar as sombras, é preciso se sentir assim.
Os 12 contos
Noite
Escavadeiras e trabalhadores rodeiam uma casa de uma fazenda, transformada em um museu com duas mulheres dentro. “Vi esse cenário quando fui visitar meu pai. Mas a história só se completou quando soube de um acidente de um mototaxista de Taquaritinga do Norte que fugia com sua namorada”, conta Ronaldo.
Bilhar
Talvez o conto mais forte do romance, a narrativa fala uma casa amaldiçoada da cidade e da rivalidade do pai de José, que conta a história, e um velho amigo dele, em uma prosa mergulhada no terror do passado e na permanência dos desejos.
Força
Se a memória é tema das maiorias dos contos, aqui a perda dela aparece através da personagem de uma pintora, Elvira: “Monet pintou melhor na cegueira. Minha escuridão é anterior aos olhos.”
Magarefe
Partindo do fedor dos jogadores depois das peladas de cidades do interior, a narrativa revela as lembranças de um médico sobre um jovem que tentou a sorte no difícil universo do futebol profissional .
Mellah
Novamente aqui os cheiros são importantes, mas para falar do pertencimento e do abandono através de família de exilados. “Por que vive se expulsando dos lugares?”, questiona o conto.
Atlântico
Já publicado de forma isolada, o conto é um passeio pela injustiças sociais do Recife contemporâneo. Nele, Cecília, uma jovem estudante, vê a violência naturalizada das separações de classe e do machismo, cercada por dramas familiares.
Helicópteros
Já publicado na Granta, o conto aborda o conflito sírio-libanês ao falar de uma família cuja matriarca, mesmo radicada em São Paulo, continua a conviver com o terror da guerra.
Perfeição
Um homem perde a memória depois de um acidente misterioso. Em uma casa cheia de livros, só com sua empregada, ele tenta relembrar algo da sua vida e do seu passado.
Sombras
Depois de prometer a sua mãe que só se casaria depois da morte do pai, uma floricultoras recebe cartas do seu noivo secreto, em mais um conto que revela as dores do desejo e o conflito delas com a tradição.
Véu
Os preparativos para o casamento de Celina vão revelando os segredos das mulheres e homens da família, trabalhando com o simbolismo do matrimônio e o furor das atrações proibidas.
Amor
Uma mulher e suas duas filhas passam os dias trancadas na própria casa, proibidas de sair por um marido possessivo. O mundo lá fora é um mistério, que ganha cores mais atrativas – e perigosas – com a chegada de um circo ao lado da casa.
Lua
Numa espécie de autoficção, Ronaldo narra as filmagens de Lua Cambará, mergulhando no universo das memórias familiares que tanto aparecem na sua prosa.