Conta o poema: “pergunta-me por que não/ gritei já que não estava/ amordaçada não respondi mas sei/ que já se nasce com a mordaça”. Escrever pode ser tentar arrancar essa mordaças, o leitor logo compreende ao ler o livro O Martelo, da recifense radicada em Berlim Adelaide Ivánova. Na sua segunda obra de versos, a autora de Polaróides (Cesárea, com acento mesmo) trabalha através da subjetividade e da linguagem dois temas fortes: o estupro e a liberdade sexual feminina.
Na obra da editora portuguesa Douda Correria (que pode ser comprada, via paypal, pela página do Facebook), Adelaide cria através da imagem do martelo versos sobre o machismo e, paradoxalmente, o amor. Mais do que o ícone da justiça (que também continua a ser), a ferramenta é evocada como o sintoma da insegurança: num dos poemas, é preciso dormir com um martelo embaixo do travesseiro para permitir a reação a novos ataques.
Antes, na poesia da recifense, a ironia parecia direcionada a si mesmo, quase como uma saborosa auto-crueldade. Agora, em O Martelo, Adelaide leva sua mira também para fora de si. Sua ironia despretensiosa empresta leveza ao texto e, ao mesmo tempo, desfere golpes necessários no machismo, na cultura de amizades e lacunas legais que o sustentam, nas opressões físicas e morais. Há humor, há rancor, há afeto e há, principalmente, uma escrita de impacto nesse processo: a poesia é o corpo, a política e também a possibilidade de felicidade, nos seus próprios moldes.
Os versos são criados do ponto de vista do confronto: representam a vontade de não se calar, de viver apesar do horror do mundo (“não morrer/ é a sua vingança”). É por isso que existem também ali poemas de amor – amor nada idealizado – dedicados a um Humboldt. O Martelo é um livro sobre o que é necessário dizer e o que é necessário viver, apesar da violência.
Leia um poema do livro O Martelo, de Adelaide Ivánova:
a porca
a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual.