Vou começar a contar a história desse livro com um pedacinho bem pequeno da minha própria história. Quando pré-adolescente, era fascinada pela biblioteca que meu pai mantinha com muito zelo, para não dizer ciúme. Uma coleção me atraía particularmente: a que era formada por livros com vistosas capas cor de carmim com letras douradas na lombada: Vidas de Homens Célebres, acho que era esse o título que unia todos os volumes, mais de 20, se também não me falha a memória.
Entre eles havia um, apenas um, dedicado às mulheres que, com suas ações e convicções, mudaram sua família, sua comunidade, sua época e, no somatório final, contribuíram para mudar o mundo. Eu achava pouco, muito pouco. Não era possível que a desproporção entre ELES e ELAS fosse de fato tão grande.
É isso o que chamamos de representação, ou seja, só conseguimos vislumbrar e, por conseguinte, assimilar como realidade aquilo que nos é constantemente exibido pelos meios de comunicação, que nos cercam o tempo todo enviando informações. Quanto mais vezes vemos uma mensagem – positiva ou negativa, verdadeira ou falsa – sendo espalhada pelos livros, televisão, propaganda, pelo cinema ou teatro, jornais, revistas e, recentemente, redes sociais, mais tendemos a aceitar sua existência como inquestionável. A importância das mulheres como agente de transformação no mundo vem sendo, há séculos, subnotificada. Tentar compensar esta lacuna é um dos propósitos da publicação Histórias de Ninar Garotas Rebeldes, que acaba de chegar às livrarias (V&R Editoras, 207 páginas, R$ 99,90).
Com o subtítulo 100 Fábulas de Mulheres Extraordinárias, o volume, recheado com belos retratos assinados por 60 ilustradoras de diversos países, traz embutida na sua própria confecção uma narrativa que contém parágrafos de empreendedorismo, novas plataformas de arrecadação de verba e disposição para contribuir com o empoderamento feminino através da reverberação de representações positivas de mulheres de variadas origens, etnias e contextos político, religioso e social.
História de Ninar foi o livro que arrecadou o maior valor na história do financiamento coletivo (crowdfunding) – mais de R$ 1 milhão de dólares – com apoiadores em mais de 70 países. Um exemplo materializado do ditado que diz ser a força feita pela união.
O livro criado pelas parceiras italianas é voltado ao público infanto-juvenil, e essa pontuação de público-alvo é importante para que entendamos o seu formato. As histórias de vida selecionadas são encurtadas (ocupando apenas uma página cada) e narradas, como o próprio título indica, no ritmo das histórias recitadas ao pé da cama, para embalar os primeiros estágios do sono. Até por isso, são simplificadas em suas complexidades humanas e nas nuances culturais que envolvem cada uma dessas personagens da história. Neste aspecto, a compilação serve mais como um aperitivo para aguçar a curiosidade de se penetrar mais a fundo naquelas trajetórias com as quais os leitores mais se identificarem.
Histórias como a de Michaela Deprince, nascida em 6 de janeiro de 1995, em Serra Leoa, órfã que perdeu os pais na terrível guerra que dizimou milhões de pessoas naquele país africano. Acolhida por um orfanato, deparou-se com uma revista que havia sido arrastada pelo vento até o porão onde ela costumava brincar com a amiga, Mia. Na capa, havia a imagem de uma linda mulher com roupa brilhante, equilibrada na ponta dos pés. “É uma bailarina”, explicou-lhe a professora. Aquela representação a atingiu como um raio: “Ela parece tão feliz”, pensou Michaela aos quatro anos, “Quero ser como ela”. Michaela tinha vitiligo, uma condição que despigmenta a pele, causando manchas esbranquiçadas em sua cor marrom. Na instituição em que morou parte da infância, as crianças a chamavam, por conta disso, de “filha do diabo”. Ao ser adotada, Michaela mostrou à mãe substituta sua bailarina de papel e foi imediatamente matriculada num curso de balé. Hoje, ela integra o corpo do Balé Nacional Holandês
A dupla de autoras acreditou ter atingido a marca à qual se propôs ao receber mensagens de futuros papais e mamães dando conta da alegria que era poder contar com um livro como aquele. Ou de amigas que diziam ter sido a campanha que elas alavancaram a motivação que faltava para que se lançassem num projeto que, à primeira vista, parecia complicado demais para ser alcançado. “A maioria das mulheres extraordinárias retratadas neste livro nunca experienciou esse tipo de convicção. Independente da importância das suas descobertas, da audácia de suas aventuras e da extensão de sua genialidade, elas foram constantemente menosprezadas, esquecidas e, em alguns casos, quase excluídas da história”, escrevem Elena e Francesca na apresentação da obra.
Percebe-se que existiu um cuidado para que a seleção de 100 mulheres representativas fosse feita de modo inclusivo, contemplando representantes femininas de países dos vários continentes. Claro, que, como toda lista, ela se tornará incompleta se contemplada por este ou aquele recorte mais específico.
Está lá, por exemplo, um perfil impensável neste tipo de compilação, há 40 anos: o de Coy Mathis. Nascida como um garoto, nos Estados Unidos, em 2007, Coy pertence ao dito universo “rebelde” por ter, com a compreensão e apoio dos seus pais, fincado pé na sua vontade de se vestir como menina desde que era bem pequena. Uma noite, Coy perguntou para a mãe: “Quando vamos no médico para você me transformar numa menina de verdade?”. Coy conquistou o direito de ser tratada da forma como se sentia, internamente. Seus pais, inclusive, recorreram a um juiz para garanti-lhe o direito de usar o banheiro feminino, e não o de meninos ou aquele reservado para pessoas com deficiência. “Não sou um garoto! Não sou deficiente! Sou uma garota!”, disse, encerrando a questão.