Quadrinhos não têm trilha sonora. Mas quando se trata de Billie Holiday os limites entre as linguagens parecem se desvanecer. Enquanto os olhos passeiam pelo traço inconfundível de Muñoz, as letras melancólicas de Lady Day dão o tom da narrativa, repleta de tragédias pessoais. E quanto mais se mergulha na história, mais sua voz, imponente, aparenta reverberar pelos quatro cantos dos quadros, saltar das páginas e criar vida própria.
Ler Billie Holiday, HQ roteirizada pelo argentino Carlos Sampayo e ilustrada pelo seu compatriota José Muñoz, é como ser transportado para um outro tempo, para outra realidade. No caso, a dos clubes nova-iorquinos de jazz dos anos 1940. Época de ouro do ritmo, mas também de forte segregação racial nos Estados Unidos, onde nem a fama e nem o dinheiro eram capazes de imunizar uma pessoa negra contra o preconceito. Sobretudo quando se era mulher.
E era justamente essa tragédia do racismo que fazia Billie cantar a plenos pulmões. Talvez por isso sua música soasse tão verdadeira. Pois ela, que foi abusada desde a infância e se prostituiu para sobreviver, sabia como ninguém falar das dores de ser quem era.
Esses momentos que marcaram negativamente a vida de Eleanora Fagan Gough (seu nome de batismo) são fielmente retratados na graphic novel, onde vemos uma das maiores figuras do jazz mundial ser humilhada incontáveis vezes. Fosse por algum homem agressivo com o qual se relacionava ou pela própria instituição policial.
Não é à toa que uma de suas mais famosas canções Fine and Mellow, em livre tradução, diz: "Meu homem, ele não me ama / Me trata horrivelmente mal / Ele é, o pior homem / Que eu já vi". E assim Billy foi à perdição. Envolta pelo trauma de seus relacionamentos abusivos, afundou suas angústias no scotch e nos ilícitos, vícios que mais tarde lhe renderiam diversas prisões, culminando na sua precoce morte, aos 44 anos, por cirrose hepática.
Muitas vezes injustiçada pela sua cor e pelo teor de suas músicas, Billie morreu algemada na cama de um hospital, após detenção por porte de drogas em 1959.
Aclamada biografia quadrinizada publicada nos anos 1980, Billie Holiday narra todos esses episódios de forma não-linear, alternados pela vivência de um jornalista que descobre a potência de seu timbre e de sua história 30 anos depois de sua morte, quando é incumbido a escrever uma matéria especial sobre a cantora.
A sensação que dá ao terminar de ler a graphic novel é que a história de Billie não poderia ter sido contada de forma melhor. Em preto e branco chapados, o incrível jogo de luz e sombra de Muñoz combinado à ambientação noir de Sampayo parece mais um passaporte para o Harlem, onde a cantora se apresentou com as big bands e, mesmo que por um vislumbre, foi feliz.
Em comemoração ao centenário de Lady Day, em 2015, saiu primeiramente na França uma edição de luxo da HQ, trazida ao Brasil neste ano pela editora Mino. Com capa dura e apliques dourados, o exemplar traz um excelente acabamento gráfico em suas 80 páginas, impressas em papel couchê. Na introdução, o texto de um crítico de jazz francês ambienta o leitor, que, ao final da edição, pode se deleitar com ilustrações de Muñoz dentro da pegada da narrativa.
Para se ter ideia, Frank Miller, grande nome da história das histórias em quadrinhos, teve como uma de suas principais influências o argentino José Muñoz. Inspiração que pode ser constatada no seu mais famoso trabalho, Sin City. Juntos, Muñoz e Sampayo criaram as aventuras do detetive Alack Sinner e também produziram um quadrinho sobre Carlos Gardel, o mais famoso dos cantores de tango.