Em dezembro de 2016, Francisco Brennand publicou uma caixa com os quatro volumes do seu diário. É uma obra que faz jus, em seu cuidado editorial, à dimensão da obra e da escrita do artista pernambucano, referência da arte no continente. Ainda que tenha recebido matérias entusiasmadas na imprensa, foram poucas leituras mais detalhadas. “Posso contar nos dedos os nomes dos meus leitores”, revela o pintor e escultor.
Brennand sentia que os diários funcionavam como as edições de antigamente, que chegavam ao leitor fechadas, com as páginas ainda coladas umas nas outras. Para ler, o usuário precisava cortar cada uma delas com uma espátula. E só dois anos depois do lançamento, o artista, agora com 91 anos, acredita ter encontrado o instrumento que pode abrir as páginas dos seus livros: a obra Os Cadernos Verdes de Francisco Brennand: Uma Leitura (Viva Editora), da professora e psicanalista Ruth Vasconcelos, que reside em Alagoas.
O trabalho traz uma análise cuidadosa dos escritos de Brennand, a partir tanto da leitura como de encontros semanais entre os dois. Dividida em quatro volumes, a caixa vai ser lançada no próximo sábado, 2 de fevereiro, às 16h, na Oficina Brennand.
“Senti que Ruth na verdade vai inaugurar a leitura dos meus livros”, conta Brennand. A professora procurou o artista quando se mudou para o Recife para iniciar a pesquisa do seu pós-doutorado, que abordaria a presença das tragédias e do mal-estar na obra de Brennand. A partir daí, os dois passaram a conversar sobre a vida e a arte do pintor, acompanhados da leitura detalhada da pesquisadora.
Nos diários, Brennand faz um passeio denso – e, por isso, fascinante – por sua trajetória pessoal, pelas questões que o angustiam na arte e na vida, pelas leituras e mesmo pelos alter-egos e personagens que cria para dar corpo às suas dúvidas. As anotações começaram em 1949, quando Brennand partia para morar em Paris, hospedando-se na casa de Cícero Dias.
No início, os encontros traziam conversas livres, sem roteiro. A partir do 10a reunião, ela passou a levar os textos e anotações que fazia enquanto lia o diário. “Eu confesso que no início a escrita tinha como único objetivo ser apresentada para ele, não para o resto do mundo. Eu escrevi para Brennand”, afirma. Os “cadernos verdes” do título da coleção são os próprios diários do artista, que começou a escrita em um volume verde. “Fez muito sentido, porque o verde é uma cor muito forte também na obra dele”, comenta Ruth.
Brennand ficou tocado com a dedicação da pesquisadora. “Um psicanalista tem a paciência de ver os males da alma de outra pessoa. Ruth entrou no livro com essa paciência. E foi analisando página por página durante 520 dias, com reuniões de quatro horas”, aponta o artista. “Não foi o caso de uma leitura e crítica geral. Ela fez como um artista que, ao criar uma natureza morta, escolhe pintar primeiro a maçã, depois o bule, depois a garrafa de vinho e a toalha. Ao contrário de ver a relação do conjunto com o fundo, com toda a cena, Ruth tentou pegar os fragmentos. E deu certo, porque essa atenção é amorosa e, antes de tudo, responsável. Ela se prendeu a algo necessário a todos os leitores, o encantamento.”
A leitura é para ele uma nova autoria do texto. “O poeta Novalis diz que o leitor é o autor ampliado. E Jorge Luis Borges diz que é o autor duplicado”, cita o pintor. A produção de Ruth assim traz assim um Brennand orgulhosamente mediado. “Eu sou uma pessoa muito complicada, e preciso que os outros me simplifiquem”, confessa.
Cadernos Verdes... não é uma obra de psicanálise, mas, até pela formação da sua autora, traz elementos da área. Ruth, no entanto, ressalta que buscou mais uma leitura do que a discussão de elementos teóricos. “O diário de Brennand é uma fonte de informações sobre mitologia, arte, história das culturas, a alma humana. É um tratado filosófico, uma obra de consulta permanente”, ressalta. “Os grandes temas da sua vida são a arte, a literatura, a relação com as mulheres e o processo de produção na arte, sempre vinculado a algum livro que leu.”
Nessa observação, ela encontrou os elementos da tragédia e o mal-estar que procurava originalmente. “Ele registrou ali a sua dor existencial. Brennand não brincou de viver, ele viveu de verdade. Apesar de ser uma figura com traços de humor interessantes, ele traz em si uma expressão muito grave da condição humana. E é um sujeito muito radical na vida, na forma como trata suas questões. Tudo para ele é também existencial, e isso se traduz nas suas obras”, aponta a autora.
Além disso, ela vê no escritos “uma relação litigiosa com os diários”, sempre questionando sua função e natureza. E, mais do que o tema das mulheres, Ruth nota a importância da Deborah Brennand, primeira esposa do artista, que morreu em 2015 – ele ainda usa uma faixa negra no braço para mostrar o seu luto.
Brennand continua escrevendo, especialmente no que chama de Salário Mínimo, volume em que anota trechos de três ou quatro linhas, pois a sua mão já treme bastante. “Eu não tenho intenção de concorrer com escritor nenhum. Essas anotações são anotações de uma mente perplexa diante da vida, da noite, do dia e de todas as coisas que acontecem. Eu vejo tudo, para todo lado, e para mim a palavra tem tanta importância que tudo que se diz passa a ter uma mensagem. Ou uma ameaça”, relata. “Quer me ver perplexo? É diante de uma pessoa silenciosa.”
Ainda assim, as grandes lacunas na vida de Brennand são as mulheres, pessoas que “teimam em ficar silenciosas”. “Meu diário parece ter, e isso as pessoas exploram, supostas conquistas amorosas. Confesso que eu cheguei aos 91 anos e nunca conquistei mulher nenhuma. Mas a coisa que eu tentava e até hoje não consegui era que elas falassem e respondessem aquilo que eu perguntava – ou o que nunca perguntava. E elas nunca falaram”, conclui. “O que eu tenho comigo hoje, antes de mais nada, é a dúvida.”