Nenhum sentimento é plano dentro da obra do escritor pernambucano Raimundo Carrero. Muito do fôlego dos seus livros vem dessa tensão moral, fruto de decisões da carne, da alma ou da loucura dos seus personagens. A sua nova novela, Colégio das Freiras, parece mergulhar ainda mais radicalmente nessas contradições: não só na dimensão íntima delas, mas no puritanismo e conservadorismo que as acentua e oprime.
Se o título do livro sugere que o romance se passa em um recinto religioso, o leitor logo entende a primeira ironia da prosa de Carrero: o Colégio de Freiras é, na verdade, um prostíbulo afamado no centro do Recife. Primeiro livro inédito do autor desde O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo, de 2015, a novela, editada pela Iluminuras e com capa da ilustradora Hallina Beltrão, vai ser lançada quinta (11), às 19h, em São Paulo, em conversa com a escritora Adrienne Myrtes e o jornalista Robson Viturino na Biblioteca Mário de Andrade. No Recife, a noite de autógrafos está marcada para a próxima segunda (15), também às 19h, no Centro Cultural Raimundo Carrero.
A cena inicial de Colégio de Freiras é dura, e também é impiedosamente descrita por Carrero. Um pai entrega a filha a uma casa de prostituição depois de descobrir que ela perdeu a virgindade antes do casamento. O personagem, chamado Vesúvio, é um a figura caricata: um homem irritadiço, que defende a moral e a família e compõe sonetos que defendem a pureza. “Sexo, doutor Vulcão, é uma reivindicação do corpo, não é safadeza, não. É humano. É também um jeito de enfrentar o mundo. De contestar as convenções”, responde a ele Dona Quermesse, dona do local.
Dentro desse turbilhão inicial está a verdadeira personagem da narrativa, Vânia, a filha rejeitada. Pelos olhos de Carrero e seus personagens, a trajetória dela é a narrativa da sexualidade feminina libertada diante dos obstáculos e ataques da sociedade. Afinal, não é só o pai que a reprime: além ser odiada por numa colega, Milena, Vânia também termina presa em uma Colônia Penal criada para mulheres que “se perderam”. Nas várias instâncias da novela, a hipocrisia é desnudada diante da liberdade do corpo e dos sonhos da personagem.
A prostituição e a opressão religiosa são assuntos essenciais para o autor. “São dois temas radicais, que expõem a condição humana, tema da minha obra literária desde a estreia. São também os dois lados da vida, que exigem tensão, amor físico e santidade. De resto, o homem está sempre diante do dilema: ou a festa ou o fogo. Sobretudo porque a sociedade faz cobranças indevidas e forçadas”, conta ao JC.
Segundo Carrero, Colégio de Freiras é um livro que vai da festa à agonia. “A narrativa pedia muitas vozes. A de Vânia, na primeira pessoa, e a de Milena, a testemunha, também na primeira pessoa. Uma que sangra, e uma segunda que ofende e que acolhe. Vânia é uma menina que passa 30 anos presa porque perdeu a virgindade, até fugir e fundar uma congregação religiosa. Sempre uma pessoa com perspectiva de fuga. E sobretudo, da principal fuga, a fuga de si mesma, o que todos nós fazemos o tempo todo”, aponta o escritor.
O livro surgiu da sina injusta de muitas mulheres no passado, que perdiam a virgindade antes do casamento e só tinham poucos destinos possíveis: o convento, o presídio ou a prostituição. “Por isso, Vânia vai da revolta à loucura”, continua Carrero.
No fanatismo religioso de pano de fundo do romance, a novela também se remete ao universo anterior da obra do autor. Jeremias, presente nos romances Maçã Agreste e Somos Pedras que se Consomem, faz uma breve aparição. “Jeremias é apenas uma referência. A minha obra é uma experiência única, cuja principal ênfase é a condição humana, que costumo chamar de abismo humano. Impressiona-me, profundamente, o comportamento bipolar do homem que vai a extremos permanentes. Do sangue ao sonho. Do horror ao amor. Do crime à ternura”, enumera.
Na sua abertura, Carrero também dedica o livro a amigos, familiares e duas figuras públicas, Lima Barreto e Marielle Franco. “Ambos são símbolos de uma sociedade que prefere matar a amar. Lima foi, por assim dizer, morto em vida. Muitas vezes foi jogado num hospício, que ele chamava de Cemitério dos Vivos. E Marielle foi assassinada verdadeiramente. E se transformou no grande símbolo da luta das mulheres pelos seus direitos”, explica as justas homenagens.