El Dorado: Shakira retoma às raízes sul-americanas em novo disco

Cantora, uma das grandes pop stars mundiais, mostra que continua afiada
Márcio Bastos
Publicado em 30/05/2017 às 14:15
Cantora, uma das grandes pop stars mundiais, mostra que continua afiada Foto: Reprodução


Na mitologia dos povos nativos da Colômbia, um chefe tribal, como parte de um ritual religioso, cobriu seu corpo de ouro e atirou-se no lago Guatavita. Com o passar do tempo, a lenda ganhou novas versões, referindo-se a uma cidade ou império banhados com o metal precioso. O local – ou melhor, a ideia – ganhou dos espanhóis o nome de El Dorado e levou milhares de europeus às florestas do Novo Mundo em busca da riqueza lendária. Em um sentido metafórico, esta jornada à procura do tesouro foi o tema escolhido por Shakira para guiar seu novo álbum, que leva o nome da cidade dourada.

Grande estrela da música sul-americana no mundo, Shakira conseguiu com louvor conquistar o prêmio que, atualmente, Anitta tenta buscar: quebrar as barreiras locais e se tornar uma atração a nível global. Desde Laundry Service (2001), seu primeiro disco majoritariamente cantado em inglês, ficou claro que a artista estava disposta a competir com nomes como Madonna, Britney Spears e Christina Aguilera. Com voz e estilo singulares, conseguiu. Sua habilidade para criar sucessos também foi responsável por alguns dos grandes hits do pop das últimas duas décadas, como Whenever, Wherever, Hips Don’t Lie e Waka Waka.

Para alcançar seus objetivos, no entanto, Shakira tomou veredas que muitas vezes levaram a resultados que brilhavam, mas cujo valor era efêmero. Ao abrir mão das letras poéticas que marcaram seus primeiros discos, ela conquistou as pistas de dança, mas foi acusada de deixar de lado seu DNA artístico em prol de uma identidade genérica, voltada para o consumo fácil.

Em El Dorado, seu 11º álbum, Shakira parece focada em redirecionar sua bússola. Se em Sale El Sol (2010) e Shakira (2014) a cantora já apontava um retorno aos sons latinos, após abraçar o pop e a música eletrônica em She Wolf (2009), no novo trabalho a transição é completa. A decisão, além de parecer natural diante da trajetória dela, encontra terreno fértil diante do fenômeno atual da música latina nas rádios mundiais, como mostra o sucesso de Despacito e das próprias músicas da artista.

Em entrevista ao New York Times, Shakira afirmou que após o lançamento do álbum que leva seu nome, entrou em crise em relação ao conteúdo de suas músicas recentes. “Estava cheia de dúvidas e pensei que nunca mais ia escrever boas canções”, disse. Casada com o jogador do Barcelona Gerard Piqué, com quem tem dois filhos, ela chegou a cogitar não lançar mais álbuns, focando-se apenas nos singles. De fato, El Dorado é um trabalho que, apesar da unidade sonora, parece seguir uma lógica voltada para a era dos streamings.

Segundo a cantora, o título do disco veio da percepção de que a inspiração que tanto buscava (como a cidade mítica) estava ao seu alcance, mas que primeiro seria necessário abandonar pretensões e se aproximar de sua essência. Shakira disse ainda na entrevista à publicação americana que sua carreira sempre foi seu principal foco, mas que seus objetivos mudaram desde o nascimento de seus filhos. O conflito entre a vida doméstica e sua posição como estrela pop também pesou nessa sua encruzilhada artística e foi outro pilar do novo trabalho.

VOLTA ÀS ORIGENS

Como lançar um álbum não era mais uma preocupação, Shakira passou a dedicar-se a sessões mais despretensiosas no estúdio. Demorou cerca de dois anos para terminar o álbum e nesse ínterim foi dando corpo ao projeto de uma maneira fluida. Um marco inicial desse processo é La Bicicleta, parceria com o conterrâneo Carlos Vives. Foi a primeira vez em que a estrela gravou com outro colombiano e pareceu um passo ousado.

Isso porque a canção, que mescla vallenato, ritmo típico da Colômbia, reggaeton e pop tinha tudo para se tornar um sucesso local, mas, surpreendentemente, conquistou as rádios ao redor do globo. Nostálgica, a faixa versa sobre a infância e adolescência dos intérpretes, ressaltando as belezas naturais e tradições da terra natal. Com quase 1 bilhão de visualizações no Youtube e vencedora de dois Grammys latinos, de canção e gravação do ano, foi um dos grandes sucessos de 2016.

Empolgada com a recepção, Shakira lançou Chantaje, com o também conterrâneo Maluma. A faixa, um reggaeton sexy, mostrou o direcionamento e também a prioridade dela nessa nova fase: focar no público latino. Em El Dorado, ela é bem-sucedida em criar canções de apelo universal, mas durante todo o disco fica clara sua preocupação em dialogar com seu público base.

A faixa de abertura do disco, Me Enamoré, uma ode à sua relação com Gerard Piqué, é uma das mais dançantes do disco, mas não chega a ser particularmente marcante. Já a canção seguinte, Nada, muda de forma abrupta o clima, entregando uma das melhores baladas recentes de Shakira, lembrando os melhores momentos de Fijácion Oral (2005), um de seus álbuns mais refinados. Nesta mesma linha está Coconut Tree, uma das poucas cantadas em inglês, junto a When a Woman e What We Said, parceria com o grupo Magic!.

Essas, no entanto, não adicionam muito ao álbum. Isso porque Shakira parece em seu melhor quando não tenta traduzir seus sentimentos para outra língua. Trap, outra parceria com Maluma, é um dos destaques do álbum, e mais uma vez trata-se de um dueto sensual, mas desta vez fundamentado em cima da trap music e é uma boa adição ao catálogo da colombiana.

El Dorado é um passo positivo de Shakira em uma direção mais orgânica. Suas experimentações no pop continuam entre as mais interessantes frente às suas conterrâneas e o mergulho nos ritmos latinos podem contribuir para uma diversidade homogêneo universo do mainstream.

É possível ler o disco, também, como uma provocação. Assim como os europeus saquearam a América e dizimaram seu povo em busca da riquezas naturais (e imaginárias), hoje esse processo de apropriação acontece também no campo da cultura. Ao abraçar suas raízes, ela abre as portas para que sua voz seja reconhecida mais uma vez como um produto sul-americano. Em tempos de ameaças de muros separatistas, assumir seu DNA e celebrar suas particularidades pode até ser uma atitude comercial, mas não deixa de carregar um poder político.

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