É um show que não muda a ordem das coisas, não tira os móveis do lugar e menos ainda pode ser inscrito em qualquer linha evolutiva da música popular brasileira. Não serve nem para Caetano se reiventar - como no Abraçaço que coroou sua fase agudamente pop e roqueira no auge da maturidade. Por isso mesmo, o show Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso é antológico. Não tem a pretensão de nos levar muitos quilômetros além de nossas zonas de conforto musical. Mas, ao nos convidar, sem direito de recusa, à intimidade de seus filhos, Caetano nos faz visitar a música brasileira por dentro de algumas de suas artérias.
O ambiente era de uma cumplicidade fluindo generosa do palco para a plateia no Teatro Rio Mar, na noite da última terça, quando o Recife teve uma única apresentação do show que vem cumprindo temporadas concorridas em outras grandes capitais do País. Em cena, Caetano, leoninamente patriarca aos 75 anos, canta em parceria com seus três rebentos: Moreno, 44, Zeca, 25, e Tom, 20 anos. Com o pai, os "meninos" reforçam o mito da consaguinidade musical.
Eles pareciam estar na sala de casa. E estavam: mais que um show de música, os Veloso destilam suas memória e humor internos. Mais que acordes, tocam piadas, afetos, afagos e cumplicidade - Caetano sempre reverenciado como o grande veio de uma família que não poderia ter outro destino se não a música.
Não há banda de apoio. Eles mesmos se revezam nos instrumentos. Zeca, quase sempre ao piano. Tom, nas cordas. Moreno, arrebetando com seu prato raspado com faca , como manda a escola de Santo Amaro da Purificação, e outros instrumentos de percussão como as lixas roçadas lindamente nos sambas de roda como How beautiful could a being be, a canção que fez de presente para o pai, há 25 anos, e acabou por entrar no repertório do álbum Tropiclália 2, dele e de Gil.
Ao tocar Boas vindas, composta em 1992 para o nascimento de Zeca, Caetano parece dizer que a saudação rege toda a prole. Lembrando ser deliberadamente agnóstico - "arreligioso, irreligioso", Caetano recordou de quando compôs Ofertório para a missa de celebração dos noventa anos da mãe, Dona Canô, falecida em 2012. Fazendo graça, Moreno mimetiza o pai em Leãozinho. "Tive que aprender essa música do meu pai para o show. Pelo menos, é bonitinha", brincava.
Os meninos mostram seus vieses de compositor. Zeca, com a inescapável e uterina Todo homem. Música da jovem e potente banda Donica, Tom exibiu um "Um só lugar".
Desenvolvto, Moreno brilha ao interpretar Um canto de afoxé para o bloco do Ilê. Surge também a sua "Deusa do mar", um axé desconstruido e decantado numa canção de amor.
Caetano seguia aprovando e comentando as canções dos filhos. Mas, naturalmente, a obra de Caetano estrutura o show em momentos luminosos: "Jenipapo Absoluto", "A Tua Presença Morena", "Trem as Cores", "Oração ao Tempo", "Alguém Cantando", "Reconvexo", "Gente", "Não me arrependo", "Força Estranha"... É o show -família de um sujeito que, há mais de meio século, vai parindo filhos musicais pelo Brasil. Inclusive os que carregam seu sangue. A plateia, que incluia amigos de longa data, como a atriz Sônia Braga, ou mais recentes, como o cineasta Kleber Mendonça Filho, de quem Caetano é admirador entusiasmado, parecia prolongar a família.