Mais de uma década, 14 anos para ser exato, após deixar a Mestre Ambrósio, banda que abriu, de forma mais radical como nenhuma outra, o acesso do maracatu e do cavalo marinho ao mapa sonoro do pop brasileiro, Hélder Vasconcelos está de volta ao ambiente do disco. Sambador, seu primeiro álbum-solo, é lançado, hoje, não extamente como um show, mas sob a trama do espetáculo musical Eu sou. A apresentação acontece às 20h, dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos - festival que, mais que uma retrospectiva da cena local, como em anos anteriores, tem servido de plataforma para vários lançamentos.
“Não é exatamente um show, mas um espetáculo de música. Mesmo na época da Mestre Ambrósio, eu nunca estava apenas com a música no palco”, diz ele, que deixou a banda para, além de continuar sua investigação sobre a cultura musical da Zona da Mata de Pernambuco, se dedicar às duas formas mais clássicas de expressão das artes cênicas: o teatro e dança.
Eu Sou completa uma trilogia de solos criada pelo artista. No mesmo ano em que deixou a Mestre Ambrósio, 2004, ele estreou Espiral Brinquedo Meu (2004), em que o teatro predominava como forma expressiva. Por Si Só, de 2007, teve a dança como elemento frontal. O novo espetáculo marca o retorno mais contundente à música.
Sob direção do músico-ator natalense Marco França, Hélder traz as músicas do álbum Sambador transpostas para o ambiente cênico. “Como é um solo, uso recursos eletrônicos”, diz ele, sobre instrumentos de artesania tecnológica desenvolvido pelos produtores João Tragtenberg e Filipe, da Batebit Artesania Digital, para complementar a textura sonora calcada no fole de oito baixos. Música e dança se fundem no espetáculo.
Essa é a estreia do espetáculo em Recife, mas não no Brasil. Em 2016, Hélder participou de uma “ocupação” de sua obra no circuito do Sesc, em São Paulo. Durante quase um mês, apresentou os três solos reunidos. O ano passado, ele diz, foi especialmente difícil para viabilizar uma apresentação no Recife. “Vivemos um momento muito difícil, de cerceamento às artes”, diz ele que, sem nominar exatamente alguém, culpa a conjuntura política pelos entraves. “Há muitos teatros fechados na cidade. O do Parque, o da Federal. Não é exatamente por falta de recursos. Não deixamos de pagar impostos. Nossos impostos não diminuíram. Mas estou muito feliz de poder apresentar o espetáculo nesse teatro tão importante como o Santa Isabel num festival como o Janeiro”, ele diz.
Com letras e músicas compostas por Hélder ao longo desses anos em que elas foram, com calma, se materializando, o disco tem parceiros como Marco França e Johann Brehmer, que assinam com ele a produção musical e dividem os arranjos e execução das músicas. Viabilizado por uma campanha de financiamento coletivo, o disco tem ainda as participações de Renata Rosa na voz, Junior Areia no baixo acústico e Laura Tamiana e Poliana Savegnago, no coro. É um disco em que, de forma maturada, o artista apresenta sua longa formação artística na Zona da Mata de Pernambuco. Em que não cabe distinção entre as tradições mais nítidas do maracatu e do cavalo marinho e o olhar urbano do Hélder que sai do Recife para delas se inteirar.
“Desde a época do Mestre Ambrósio, eu estava num sábado brincando cavalo marinho e, na segunda, ensaiando num estúdio”, diz ele, sobre não poder mais também perceber uma fronteira nítida entre tradição e contemporaneidade em sua musicalidade. “Quando me perguntam isso, eu me aproprio da resposta de Bráulio Tavares quando lhe perguntam sobre a literatua tradicional de cordel e o mais urbano em sua criação: eu sou. O que há em comum, na minha música, entre a Zona da Mata e minha formaçãos urbana, sou eu. Não tenho como dividir”.
Nesse disco/espetáculo de estreia, Hélder incorre especialmente sobre o amor. “Não tive escapatória e chegou minha hora de falar de amor. Nada pode ser mais imprescindível do que o amor. Só através dele reconhecemos quem somos. Só no amor nossa vida é capaz de fluir plenamente. E só com amor, existimos de fato para o que fomos criados: a felicidade”, discorre.
“São muitas as possibilidades de se falar de amor. Meu ponto de partida foi a compreensão de que a vida é um ato de amor. E tudo que acontece é por amor. E é para aprofundarmos essa compreensão que nos encontramos. E só podemos nos encontrar se cada um de nós se encontrar consigo mesmo. O amor é esse campo que nos torna um quando nos encontramos. Criar é pra mim um jeito de buscar esse encontro”, diz ele que, com Sambador, sem poder mesmo abandonar a dança e o teatro, volta a colocar a música no centro.
Eu Sou. Teatro Santa Isabel (praça da República, s/n - Santo Antônio, Telefone: 3355-3323). Quinta, 25 de janeiro, 20h. R$ 40 e R$ 20 (meia).