Kmila CDD é nome conhecido entre admiradores do rap nacional. Escudeira fiel do irmão, o veterano MV Bill, participou de todos os álbuns dele, além de acompanhá-lo nos shows há tempos. “Com ele sempre me senti muito à vontade, conheci o Brasil todo, com espaço para expor minhas ideias também. Mas já sabia que meu tempo iria chegar, por isso nunca tive pressa nem afobação e sim foco para soltar algo que me deixasse satisfeita no momento adequado”, conta ela em entrevista ao JC.
Mais de dez anos após a comentada parceria dos dois no hit Estilo Vagabundo, a carioca acaba de lançar o primeiro EP da carreira solo. Com seis faixas somando cerca de 20 minutos, Preta Cabulosa se debruça em temas que vão de maternidade a estupro e é um sopro para os fãs do rap cru e simples.
“Foi complexo, divertido e desafiador”, analisa Kmila sobre o processo criativo do registro. Algumas das letras, continua ela, foram compostas literalmente junto ao irmão, numa experiência que considera única. “Já escrever solitariamente foi emocionante e poder dividir com o público traz uma satisfação motivadora”.
O álbum teve o instrumental produzido pelo elogiadíssimo DJ Caíque, por Insane Track e pelo moçambicano Proofless, escolhas feitas por ela em meio a propostas de beatmakers de todo o País. “Agradeci os convites, mas nesse primeiro momento preferi trabalhar com DJ Caíque e Insane Tracks por já conhecê-los de trabalhos anteriores. A exceção foi o Proofless que me enviou a batida certa para o tema certo (a homônima Preta Cabulosa)”.
Apesar da pouca idade, Kmila, 29 anos, é vista como representante de uma safra clássica do estilo no Brasil, seja pelo primoroso jeito de rimar ou a escolha por beats semelhantes aos da antiga geração. Cita as rappers Dina Di e Da Brat, além do grupo NWA como principais referências, mas está ligada ao que os mais novos têm produzido e se mostra aberta a incursões por outros gêneros ou à predileção contemporânea pela mistura com o trap.
“No momento tô pirando muito no EP Herstory, da Young M.A. (nova-iorquina de 25 anos)”, conta. “Não vejo o trap como algo separado do rap, é só uma derivação do ritmo. Acho ótimo quando o rap se mistura a outros ritmos e gosto muito do rap puro e tradicional também, por isso no Preta Cabulosa tem rap no estilo trap e boom bap”.
“Kmila é meu nome, CDD é meu vulgo”, verso da música abertura de Preta Cabulosa, é uma autoapresentação de uma mulher preta, rapper e cria da Cidade de Deus, comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro, que resume bem o espírito do álbum. “A realidade em que vivo na Cidade de Deus me inspira a todo momento”, afirma ela, por isso, o processo de criação deste primeiro trabalho foi reforço de uma ligação íntima de Kmila com o lugar onde vive e também o com o irmão, a quem coube a direção musical.
“Ele (MV Bill) é muito técnico e minucioso. Me levou para um lugar na mata de Niterói para ficar internada no estúdio escrevendo e gravando. Era trabalhoso, mas também divertido porque meu marido e minha filha estavam juntos comigo na gravação o tempo todo”. Desse mergulho a quatro mãos saiu a letra de A Faca, na qual Kmila narra em primeira pessoa a história de uma tentativa de estupro a uma mulher que encara o algoz sozinha. A música ganhou videoclipe publicado como prévia do disco no canal Pineapple StormTV e já conta com quase 200 mil visualizações.
“Já senti o terror do assédio na pele, mas não acho que seja necessário passar por uma situação parecida para entender a urgência de tratar do assunto. É um tema triste e chocante, mas necessário. O Bill já escreve na visão feminina há muito tempo. Um homem heterossexual só consegue escrever uma música como Estilo Vagabundo – onde Kmila e MV Bill encarnam um casal que discute a respeito do comportamento abusivo do homem em relação à companheira - se tiver muita sensibilidade com as questões femininas, o Bill tem. Acho que por esse histórico não foi difícil para ele entrar de alma no tema”, opina Kmila.
A próxima música a ganhar clipe será Ciranda da Vida, dedicada a falar da família, incluindo a filha pequena, que deu a Kmila a materialização do instinto materno que afirma sempre ter tido. “Mas uma família é bem diferente de apenas ser mãe. Aqui na CDD eu vi muitas amigas sendo mães, mas sem constituir família. É um ciclo que continua com suas filhas reproduzindo o mesmo modelo de vida. Em Ciranda... eu celebro a emoção de ser mãe e a importância de ter um companheiro junto na caminhada”, analisa.
Ironicamente, a gravação que ocorreria no primeiro dia de fevereiro precisou ser suspensa por conta dos confrontos entre policiais e traficantes que tornou turbulento o cotidiano de áreas próximas à Linha Amarela e afetou a rotina da Cidade de Deus, onde Kmila permanece morando, num exemplo real do que ela canta em Guerra. “A bala canta, vizinhança se espanta / Com a idade do garoto com um tiro na garganta / É feio / Quem sofre a consequência é o morador/ Que se joga no chão com medo do terror”. Adiada em uma semana, a filmagem será feita num parque de diversões e contará com a participação de 15 crianças moradoras da comunidade.
O primeiro show da turnê Preta Cabulosa aconteceu na última sexta-feira (2), em Salvador, escolhida por ter sido a primeira cidade onde Kmila cantou com Bill fora do Rio de Janeiro. “A receptividade lá foi muito quente, aquilo ficou marcado na minha mente, nem pensei duas vezes na hora de escolher por onde começar”. A agenda de apresentações foi aberta a partir daí e exigirá dela jogo de cintura para conciliar os próximos passos com o trabalho ao lado do irmão.
Perguntada sobre um possível incômodo por ser constantemente associada ao nome de MV Bill, ela refuta. “Pelo contrário. Além de ser irmão de sangue ele é um ícone do rap nacional. Tê-lo por perto é um privilegio de poucos. Estar perto de alguém representativo e relevante não atrapalha, só soma com minha bagagem e minhas ideias”, defende.
Para 2018 o plano primordial é expandir as mensagens do EP. “Paralelamente a isso estou preparando lançamentos com participações para soltar ao longo do ano. 2018 vai ser intenso”.