Ao longo das últimas cinco décadas, a voz de Gal Costa foi uma das mais importantes para traduzir diferentes momentos pelos quais o País atravessou. Em alguns deles, foi uma espécie de farol, iluminando momentos difíceis, como nos no final dos anos 1960/início dos das 1970, quando se tornou um símbolo daqueles que lutavam contra a ditadura militar. Aos 73 anos, a artista lançou no ano passado A Pele do Futuro, disco que reconhece a melancolia da atualidade, mas oferece uma resiliência esperançosa como antídoto. A turnê do disco chega ao Recife sexta-feira, com show no Teatro Guararapes, às 21h30.
No disco Gal (1969), com sonoridade mais psicodélica, a cantora baiana, sintonizada com os absurdos que ocorriam ao seu redor, utilizava sua arte para comunicar-se com a juventude oprimida do Brasil. Com Caetano e Gil exilados, ela levou artistas e elementos da contracultura para o grande público, com trabalhos como Legal (1970) e com o show, depois lançado como álbum, Fa-Tal: Gal a Todo Vapor (1971).
No artigo “Não se assuste, pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa”: a construção das personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar brasileira, o jornalista e pesquisador Renato Contente aponta que não só a música, como também a imagem da artista, com sua sensualidade que contrastava com o conservadorismo da época, foram fundamentais para consolidar uma ideia de rebeldia. Foi um período de efervescência criativa para Gal, interrompido em 1974, quando lança Cantar, com menos engajamento e sonoridade mais tradicional.
Se nas últimas três décadas política não entrou na pauta de Gal Costa, nas eleições de 2018 ela voltou a se expressar. O álbum foi lançado próximo à eleição presidencial e, ainda que não fale diretamente sobre o assunto, de alguma forma se coloca como um contraponto ao peso e ao ódio que foram usados como mote de campanha. Opositora de Jair Bolsonaro, vem fazendo críticas ao seu governo em entrevistas, apesar de não ter respondido à pergunta do JC, por email, sobre o ambiente político que elegeu o atual presidente.
Sobre o novo show, que tem um tom otimista, com sonoridade que alude à disco music, ela reforça que tem uma alma jovem e, por isso, continua a experimentar.
“Eu encaro a passagem do tempo da melhor forma possível. Tenho a alma jovem, gosto de estar no palco, isso me traz mais vitalidade. Esse disco é mais um em que eu não tenho medo de ousar, de dar um salto na minha carreira, inovar. Isso me mantém viva. Além das músicas do disco, para o show eu escolhi alguns sucessos da minha carreira que se encaixassem com a sonoridade disco music do álbum. Escolhemos algumas canções e fizemos novos arranjos para haver uma unidade musical”, explica.
No repertório, concebido em parceria com Marcus Preto, que assina a direção, ressalta-se a celebração, a alegria como forma de resistência. É um passeio pelas várias fases da carreira de Gal Costa e suas contribuições indeléveis para a música brasileira. Assim, ela entoa clássicos como Sua Estupidez (Roberto e Erasmo Carlos), Oração de Mãe Menininha (Dorival Caymmi), Festa do Interior (Moraes Moreira), Massa Real (Caetano Veloso) e uma versão de O Que é Que Há (Fábio Jr. e Sérgio Sá).
As canções de A Pele do Futuro também são destaques, como Viagem Passageira, composta por Gilberto Gil, Palavras no Corpo (Silva/Omar Salomão), Sublime (Dani Black) e Cuidando De Longe (Marília Mendonça).
“Eu estou sempre atenta aos novos artistas, a parcerias com vozes e estilos diferentes. Posso me dar ao luxo de fazer qualquer coisa. Comecei minha carreira bem João Gilbertiana, influenciada pela bossa nova, passei pelos anos 60, pelo Tropicalismo. Já fiz música experimental, rock, já fiz clássicos. Meu temperamento é esse, de não ter preconceito com nenhum tipo de música ou estilo. Pretendo ainda muitas coisas, mas outras coisas entraram no caminho, vamos ver como fica”, ressalta.
No palco, Gal é acompanhada de Pupillo, que assina a direção musical e assume a bateria; Chicão (teclado), Pedro Sá (guitarra), Lucas Martins (baixo), e Hugo Hori (sax e flauta). O cenário é de Omar Salomão, filho de Waly Salomão (1943–2003), que dirigiu Fatal.
Como falou anteriormente, Gal Costa tem buscado estar em consonância com seu tempo e isso inclui não só a reativação de sua voz política, mas também sua abertura para as mudanças no mercado fonográfico. Após passar por gravadoras multinacionais, ela lançou A Pele do Futuro pela independente Biscoito Fino.
Ela ressalta, porém, que mais do que o modo de produção, o que mais se transformou foi a forma de divulgação. Talvez por isso,
tenha tido presença mais ativa nas redes sociais – é usuária do Instagram – e seus lançamentos costumam ir direto para as plataformas de streaming.
Para o futuro, ela diz ter muitos desejos, mas é lacônica e misteriosa sobre os projetos. Uma cinebiografia sobre sua vida já foi anunciada e, questionada sobre o que pode-se esperar, diz apenas que “tudo é surpresa” e que é preciso esperar.