Em 29 de março de 2019, o escritor Paulo Coelho, que se tornou conhecido como parceiro de Raul Seixas nos anos 70, escreveu um depoimento para o jornal americano Washington Post. O título: “Eu fui torturado pela ditadura brasileira. É isto que Bolsonaro quer celebrar?”. O relato é assemelhado a tantos outros de vítimas da repressão: perguntas por nomes que o preso desconhece, sessões de tortura, pancadaria, choques elétricos. A iminência da morte pairando no ar. Até que vem a soltura, como se nada tivesse acontecido.
Ao longo de seu texto, Coelho não aponta nomes de possíveis pessoas que o entregaram à polícia. No final do depoimento arremata: “Décadas mais tarde, os arquivos da ditadura foram abertos ao público, e meu biógrafo pegou todo meu material. Perguntei a ele por que eu fui preso: ‘um informante o acusou’, ele disse. ‘Quer saber quem o delatou?’ Não quero. Isto não mudará o passado”.
Este episódio na biografia de Paulo Coelho envolveu Raul Seixas, os dois foram convocados à polícia juntos. Não era, por sinal, um segredo, ambos falaram sobre isto em entrevistas. Mas se tornou pela primeira vez polêmico com a biografia Não Diga Que A Canção Está Perdida, do jornalista Jotabê Medeiros (Todavia, 384 páginas, R$55,92).
“Às três horas do dia 27 de maio, uma segunda feira, um táxi deixou Raul e Paulo na porta de um prédio de três andares na rua da Relação, a duas quadras da gravadora Phillips, no Rio. Na sala de espera, Paulo puxou um jornal para ler enquanto aguardava o retorno do colega. Raul mostrou um papel de intimação a um balconista e foi levado por um corredor longo para dentro das salas. Meia hora depois, regressou. Em vez de ir direto até onde o parceiro estava sentado, dirigiu-se a um telefone público na parede e fingiu discar um numero. Em seguinte começou a cantarolar: “My dear partner, the men want to talk to you, not to me (Querido parceiro, os homens querem conversar com você, não comigo”. Raul, obviamente, alertava a Paulo Coelho que era ele que interessava à repressão. Raul foi liberado e Paulo Coelho, continuou detido.
Começaria ali a via crucis do futuro supervendedor de livros místicos. Uma tuitada de Paulo Coelho, que não acusava diretamente, suscitou a suposição de que Raul Seixas colaborou com a polícia: “Fiquei quieto por 45 anos. Achei que levava segredo para o túmulo. Não confirmei e não confirmo nada. Eu apenas vi o documento e me senti abandonado na época”. Lançou dúvidas. Alguns dias mais tarde, Coelho voltou a tuitar: “Começo a ter sérias dúvidas dos documentos que o Jotabê Medeiros me enviou, dizendo e insistindo que Raul tinha me denunciado (e-mails arquivados). O que se passou entre Raul e eu fica entre nós. Vou deletar o tweet da FSP. Acho que o cara quer apenas vender a porra do livro”.
Querer vender o livro, evidentemente, é o que tanto autor quanto editora querem. Mas neste episódio especifico do imbróglio da suposta delação de Paulo Coelho por Ral Seixas, quem botou lenha na fogueira foi a tuitada do próprio Paulo Coelho. A imprensa foi atrás, já que sensacionalismo nunca deu tanta audiência. No entanto, a documentação, as declarações, as insinuações do autor não vão além das suposições. Não há nada de conclusivo. O mais provável é que a insistência na anárquica “sociedade alternativa”, onde qualquer um poderia fazer o que lhe desse na telha, porque tudo estava dentro da lei (dos ensinamentos do bruxo Aleister Crowley), soava como subversão para a repressão da ditadura. E aliás, era uma copiada no projeto Nutopia, de John Lenon e Yoko Ono, um mundo imaginário, sem fronteiras, nem nacionalidades.
Raul Seixas, em suas fantasias criou uma narrativa de que teria feito amizade com Lennon, que o visitava, e tinham longas conversas, o que nunca foi provado. Não há registros, uma única foto deste encontro.
Mesmo que houvesse entregue o parceiro, a delação não seria surpreendente no roteiro da vida da Raul Seixas. Ele criou um personagem para si mesmo e ele próprio escrevia o roteiro. Certa vez, Luís Calanca, da Baratos e Afins, loja alternativa mais conhecida de São Paulo (e do Brasil), viu adentrar a loja um sujeito de calça e jaqueta de couro, botas, óculos escuros, barbicha, cabelos com brilhantina. Achou que fosse um imitador de Raul Seixas, mas era o próprio. Raul explicou a Calanca que andava assim pelas ruas de São Paulo. As pessoa olhavam pra ele curiosas, mas achavam que se tratasse de alguém imitando Raul Seixas.
Nem sempre a “imitação” acabava bem. Em maio de 1982, em Caieiras, a 35 quilômetros de São Paulo, Raul Seixas seria confundido com um imitador dele mesmo. Correu um boato de que o verdadeiro Raul estaria em Araraquara (SP), e o que veio a Caieiras era um impostor. Naquela noite Raul estava mais maluco que beleza. Cantou três músicas, e se recusou a atender pedidos da plateia. Não quis cantar Gita. Garrafas foram jogadas da plateia. A situação ficou descontrolada. Raul e a banda foram levados para a delegacia. O cheque do cachê foi tomado das mãos do empresário do cantor (descobriu-se depois que não tinha fundos).
O delegado puxou bruscamente a barba de Raul para provar que era falsa. Perguntou a Raul se ele sabia onde nascera o apresentador Abelardo “Chacrinha” Barbosa. Raul não respondeu. Depois de sapecar-lhe uma mãozada na orelha o mandou jogar no cárcere. Até lá, foi apanhando dos praças que o rebocavam. Passou a noite na cela, até que sua mulher, Kika Seixas, trouxesse os documentos que provavam que Raul era Raul.
METAMORFOSE
Raul Santos Seixas foi abduzido pelo rock and roll no começo da adolescência, em Salvador. À medida que crescia foi imergindo na sua paixão. Nos primeiros anos no Rio, como produtor na CBS, ajudou a impulsionar grupos feito o Sunshines e Os Jovens, criou hits para Jerry Adriani, mas queria ser cantor, o que não estava nos planos de seu Evandro Ribeiro, o todo poderoso da CBS. Raul, no entanto, não era de seguir regras. Claro que seu Evandro não aprovou, mas também não impediu, que Raul embarcasse numa aventura chamada Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, um disco dividido entre Raul, Miriam Batucada, Sérgio Sampaio e o baiano Edy Starr (que foi contratado da TV Jornal do Recife, como Edy Souza, e viajou para o Rio com passagens pagas por Capiba, em 1968).
Aos poucos, Raul foi se metamorfoseando, ao se juntar a uma turma de artistas inquietos – Leno, Sérgio Sampaio, Odair José, Odibar (parceiro de Paulo Diniz) – e a fantasiar sua biografia. Propalava que tinha sido demitido da CBS por causa do LP Grã-Ordem Kavernista. “Não é verdade”, afirma Jotabê Medeiros. O encontro com Paulo Coelho, que dirigia uma revista alternativa chamada A Pomba, selou uma amizade e parceria duradoura. Passaram a fazer a exegese de seitas esotéricas, propagavam as ideias de Aleister Crowley, cujos ensinamentos permeiam letras de hits dos dois. A partir daí, Raul Seixas entra numa espécie de fantasia rock and roll, feito um personagem da canção dos Kinks, Rock and roll Fantasy. Plagia canções internacionais, na maior cara de pau, sem dar crédito. Killer Diller, de Jimmy BreedLove (1958), virou a homófoba Rock das Aranha: “O Raul tinha horror a lésbica, tinha horror a veado, nesse sentido era a pessoas mais careta que vi na vida. Boiola não podia nem chegar perto, o Raul ficava incomodado, saía da sala, ficava piscando, fazendo trejeitos”, confirma Kika Seixas, ao autor do livro.
Não Diga Que a Canção Está Perdida é uma boa história da metamorfose ambulante chamada Raul Seixas. Jotabê foi buscar episódio do fundo do baú, mas ainda longe ser a biografia do maluco, nem sempre, beleza.