“Quando eu fiz o disco, para agradecer à Mangueira pela homenagem que me prestou e à vitória que conquistamos juntas, pensei em trazer aquele som de Santo Amaro. Queria fazer uma coisa que fosse o samba do Rio de Janeiro, o samba da Mangueira – com sua tradição, seu estilo, sua sofisticação –, mas que trouxesse toda a memória musical de Santo Amaro, infantil, comovida da minha infância. Então eu convidei o Letieres Leite, que é baiano, mas que é um músico do mundo”, diz Maria Bethânia sobre Mangueira – A Menina dos Meus Olhos (Quitanda, com distribuição Biscoito Fino), disco com repertório em que a escola verde e rosa é recorrente nas noves faixas.
Com um lançamento engatilhado para o primeiro semestre de 2020, Bethânia esquivou-se às entrevistas sobre o álbum. O foco continua sendo na turnê Claros Breus, levando o tributo à Mangueira tornar-se quase um disco extra-carreira, uma homenagem pessoal.
Bethânia já cantou a Mangueira antes. Num disco de sambas-enredos de 1994, com Caetano Veloso, David Correa, Gal Costa, Gilberto Gil e Jamelão, gravou Atrás da Verde-e-Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu (enredo da escola naquele ano, de David Correia/Paulinho Carvalho/Carlos Senna/Bira do Ponto). Ela regravaria o samba no DVD Maria Bethânia ao Vivo (1995) e voltaria a ele no show De Santo Amaro a Xerém, dividido com Zeca pagodinho (2018). O show tem um bloco dedicado ao samba de escolas e nele foram incluídos também Chico Buarque da Mangueira (Nelson Dalla Rosa/Vilas Boas/Nelson Copiai/Carlinhos das Camisas), samba enredo do desfile do Carnaval de 1998, em que a Estação Primeira da Mangueira homenageou o compositor. E ainda Exaltação à Mangueira (Enéas Brites da Silva/Aloísio Augusto da Costa)), e Maria Betânia, A Menina Dos Olhos de Oyá (Alemão do Cavaco/Almyr/Cadu/Lacyr Da Mangueira/Paulinho Bandolim/Renan Brandão), o samba enredo composto para a homenagem da escola à baiana no Sambódromo da Avenida Marquês de Sapucaí.
O samba é recorrente na obra extensa de Maria Bethânia, que já no primeiro compacto, de 1965, canta Noel Rosa e, no segundo, o sambista baiano Batatinha (Só eu Sei) e o carioca Monsueto (Mora na Filosofia). Embora seja um presente à Mangueira que, ao homenagear Maria Bethânia, saiu de um jejum de 14 anos sem ser campeã no Carnaval, Mangueira – A Menina dos Meus Olhos, como praticamente todos os projetos da cantora é amarrado por um roteiro, um conceito. Aqui ela ressalta a origem africana do samba, enfatizada pela percussão dirigida pelo maestro Letieres Leite. Porém, numa cadência de samba urbano, buarquiano. Ela abre o repertório com A Flor e o Espinho, curiosamente, a primeira vez que Bethânia canta Nelson Cavaquinho em disco (uma parceria com Guilherme de Brito).
Intercala A Flor e o Espinho e Mangueira (Assis Valente/Zequinha Reis) com uma citação do escritor angolano Mia Couto, que define este projeto particular de sambas: “A música é a língua materna de Deus. Foi isso que nem católicos, nem protestantes entenderam, que em África os deuses dançam. E todos cometeram o mesmo erro: proibiram os tambores. Na verdade, se não nos deixassem tocar os batuques, nós os pretos faríamos do corpo um tambor, ou mais grave ainda, percutiríamos com os pés sobre a superfície da Terra, e assim abrir-se-iam brechas no mundo inteiro”.
Louve-se o maestro Letieres Leite e sua orquestra, com arranjos refinados e percussão ressoando elegantemente. Bethânia está impecável. Ela mistura canto e falas em Sei Lá Mangueira (Paulinho da Viola/Hermínio Bello de Carvalho), e reforça o coro, com Caetano e Moreno Veloso, no samba inédito Maria Bethânia, A Menina dos Olhos de Oyá.