“Dos tiros do arquiduque, em junho de 1914, ao armistício e ao cessar-fogo em novembro de 1918, a Grande Guerra matou 9,2 milhões de soldados. Vinte milhões saíram feridos, de que resultaram, de volta à vida civil, 8 milhões de cegos, sem braços, pernas ou testículos, de vítimas de doenças crônicas ou de pessoas em estado de choque – e quantos não teriam sido os suicídios? Somem-se a isso 6 milhões de prisioneiros, 10 milhões de refugiados, 3 milhões de viúvas, e 6 milhões de órfãos, sem contar as baixas tardias, de pessoas que morreriam dali a alguns anos em decorrência de ferimentos ou de enfermidades contraídas por causa da luta (...)”. Pelas minúcias, os números exatos, tem-se uma ideia não apenas da erudição de Ruy Castro, e o quanto minucioso é o relato que faz do Rio de Janeiro na segunda década do século passado, em Metrópole à Beira-Mar – O Rio Moderno dos Anos 20 (Companhia das Letras, 494 páginas, livro R$ 79,90, ebook R$ 39,90).
Um livro cujo maior interesse a princípio parece ser dos cariocas, os que querem saber como era sua cidade um século atrás. Mas é uma preciosidade para historiadores e pesquisadores, porque o escritor mineiro (de Caratinga) revolve hábitos, costumes, política, cultura, o mundanismo e os crimes que chocaram a Cidade, ainda, Maravilhosa naquele início de século. Ao longo de suas quase 500 páginas, ele vai traçando pequenas biografias de expoentes da época:
“Lima Barreto era contra a República, o Carnaval, o samba, o candomblé, o cinema, o automóvel, o telefone, as danças modernas, o flerte, o footing, o banho de mar, o traje de banho, o futebol, todo tipo de esporte, inclusive xadrez e pingue-pongue, e os costumes de Botafogo e Laranjeiras, que eram os bairros dos endinheirados”. O hoje esquecido Coelho Neto, Príncipe dos Prosadores Brasileiros, é lembrado, claro, por Ruy Castro, que vai formando um mosaico carioca, fruto de uma, certamente, exaustiva pesquisa:
“Muitos escritores abriam suas portas aos amigos em dias certos da semana, e formavam núcleos mais ou menos uniformes. Um deles era o vetarano Coelho Netto, cuja casa, na Rua do Roso, em Laranjeiras, recebia a nata dos naturalistas e parnasianos, já meio combalidos pela idade e pelo estilo. No passado, haviam lutado pela Abolição e pela República. Vitoriosos, bem postos na vida e satisfeitos com sua obra, a literatura, tornara-se algo remoto. O próprio Coelho Netto – Netto, como o chamavam – já era quase o busto de si mesmo (...)”.
O que torna o livro ir além da “carioquice” é entre outros fatores, o fato de ter sido lá que as mudanças, as novidades, os modernismos, expandiam-se para o resto do país, depois o estilo requintado, e de fina ironia de Ruy Castro, que enxerta pequenos acontecimentos, quase vinhetas, no trecho. O Flamengo, lembra ele, tornou-se rubro-negro, porque a listra branca na camiseta, lembrava a bandeira da Alemanha do Kaiser.
Ao comentar sobre o Código Civil brasileiro em 1920, que privilegiava o homem, que detinha poderes absolutos sobre as mulheres, traz à baila Leolinda Daltro, baiana radicada no Rio, pioneiras em vários fronts. Aos 28 anos, em 1887, já deixara dois maridos para trás e sustentava cinco filhos como professora. Era também militante de várias causas sociais. Sua primeira bandeira foi pela incorporação à sociedade. Uma pioneira que o país desconhece.
Ruy Castro vai atrás de episódios perdidos no tempo, como a visita de madame Curie, a cientista polonesa, Prêmio Nobel, uma quase “garota de Ipanema: “... nos quase 40 dias que passou no Rio, madame Curie por pouco não se tornou uma personagem da cidade. Todo o dia de manhã ia tomar banho de mar em Ipanema, com Laura, filha de Álvaro Alvim. (...) E ela gostava de passear incógnita pelo Centro da cidade, olhando as vitrines e chupando picolé, até que suas fotos nas entrevistas, e sua voz nas transmissões da Rádio Sociedade, a fizeram ser reconhecida”.
A música popular e o futebol ocupam generoso espaço do livro, afinal Ruy Castro é um craque nos dois assuntos.
“No dia 13 de maio de 1914, o Fluminense e o América se enfrentaram nas Laranjeiras, com Carlos Alberto (ex-América) jogando pela primeira vez contra seu ex-clube – e como já fazia neste, aplicou pó de arroz ao rosto antes de entrar em campo”. Um artifício comum para disfarçar a cor da pele de jogadores negros. Mas a torcida do América conhecia bem Carlos Alberto e passou a gritar “Pó de arroz, pó de arroz”. Veio daí o apelido que o tricolor carioca tem até hoje.
Um livro que é tão farto em detalhes que é preciso se degustar vagarosamente. Episódios, anedotas pitorescas, trechos importantes da história do país se entrelaçam seguidamente. “Irineu passara nove meses na Europa e chegara de volta ao Rio com sua comitiva no dia 26 de fevereiro de 1925, pelo navio inglês Darro. A 29 de julho, exatamente 151 dias depois de botar o pé no cais, mandava às ruas o primeiro número do seu jornal, O Globo”. O Irineu, claro, tem o sobrenome Marinho, e foi pai de Roberto Marinho, que ergueu o maior império jornalístico do país.
Uma história que começa com o eco da I Guerra Mundial, seguido dos estragos da gripe espanhola (que na verdade começou nos Estados Unidos, e foi levada à Europa pelos soldados americanos). Tem como derradeiro capítulo a entrada na cidade dos revolucionários de 1930: “O Rio acordou a um som que não estava mais habituado a escutar – o de ferraduras estalando no asfalto, eram os gaúchos chegando a cavalo.
Poucos afeitos aos hábitos dos cariocas, dois deles, João Batista Luzardo, chefe de Polícia do Distrito Federal, e Joaquim Pedro Salgado Filho, delegado auxiliar e superintendente do policiamento, nomeados pelo conterrâneo Getulio Vargas, tomaram medidas severas para moralizar a praia. Entre outras normas ficou proibido que banhistas desabotoassem ou despissem na praia as camisas de banho, ou que usassem calções muito curtos. Falar ou ri alto na praia daria cadeia”. Da primeira vez, 24 horas de cana; reincidência daria 48 de prisão”.