Infância na Ilha de Santa Terezinha é narrada com fantasia em projeto

O recifense Erickson Marinho criou um projeto transmídia que consiste em um filme, um quadrinho e um videoclipe e narra a infância de quatro garotos periféricos de imaginação fértil
JC Online
Publicado em 19/06/2018 às 11:25
O recifense Erickson Marinho criou um projeto transmídia que consiste em um filme, um quadrinho e um videoclipe e narra a infância de quatro garotos periféricos de imaginação fértil Foto: Foto: Divulgação


Hoje em dia é comum ver nos quadrinhos e nas telonas super-heróis sofrendo com dilemas existenciais, problemática que foi desencadeada pelo Capitão América, da Marvel Comics, com a célebre frase: “Talvez eu devesse lutar menos e perguntar mais”, conforme lembra a pesquisadora e especialista em HQs Sonia Luyten no livro O Que É História em Quadrinhos?. Em se tratando de uma representação de “pequenos” heróis, todavia, essa história muda um pouco de prisma, pois vale muito trazer à luz a lembrança de como era boa uma infância sem preocupações, alheia às dificuldades da realidade — ainda que ela permeie o mundo da fantasia subliminarmente.

É isso o que mostra o média-metragem Os Guerreiros da Rua, dirigido pelo recifense Erickson Marinho: quatro garotos periféricos, moradores da Ilha de Santa Terezinha (em Santo Amaro, área central do Recife), empunhando espadas, levantando escudos e lançando flechas contra monstros imaginários noite e dia, como se não houvesse amanhã. Ou como se não houvessem problemas, sobretudo diante do contexto de vulnerabilidade social em que vivem. “Poucas obras aproximam fantasia de periferia, elas geralmente focam na questão das lutas sociais. E os guerreiros têm ciência da ‘vida errada’, do tráfico, da realidade... Mas preferem curtir e viver a infância”, explica Erickson, acrescentando que a produção é baseada em suas memórias pessoais.

“A história é original, não uma reprodução do que acontecia comigo e meus amigos lá na Ilha. Mas as situações e configurações dos meninos foram de certa forma baseadas na gente. A rua em que levávamos um baculejo era a mesma em que muitas vezes estávamos brincando no dia seguinte. É como se fosse uma romantização dessa característica da nossa infância”, conta o diretor. Para dar um ar de verossimilhança à trama, os atores – Glauber, Kivison, Vítor e Will – foram selecionados dentro da própria comunidade. No filme, inclusive, eles usam os seus próprios nomes e figurinos.

Misturando live-action com animação, o média é fruto do trabalho de conclusão de curso do diretor na pós-graduação em Estudos Cinematográficos, da Universidade Católica de Pernambuco. É parte de um projeto transmídia que envolve a criação de uma história em quadrinhos e um videoclipe musical. “Hoje a gente tem, ao mesmo tempo, acesso à informação de vários lugares. Dificilmente uma obra fica numa só mídia”, pontua, comentando que o universo expansivo de Matrix serviu de grande influência na produção de uma narrativa transmidiática.

“O projeto, como um todo, faz referência a desenhos animados dos anos 1990. No filme, os personagens usam armas mágicas baseadas nas da Caverna do Dragão, e elas são objetos de desejo do vilão, assim como são do Vingador. Na HQ, os Magcrints (criaturas mágicas) se assemelham aos pokémons”, diz, mencionando o game Papo & Yo, para Playstation 3, que se passa numa favela fantástica, como outra influência.

A música do videoclipe, intitulada de O Despertar do Poder, lembra o estilo das canções de abertura de animações como Dragon Ball, Digimon e o próprio Pokémon. Assim como a estrutura do média, que é dividido em capítulos, nos quais os títulos são anunciados por uma locução a la a de Herbert Richers e sua “versão brasileira”.

Assista ao videoclipe musical:

Apesar de as três produções serem independentes, elas são complementares, pois acabam se entrelaçando em dado momento. “A gente tem um personagem misterioso no filme, que fica só observando os outros. O clipe é todo focado nele, narra sua jornada. Já o quadrinho antecede a história do média, como se fosse um prelúdio, se passando antes de os guerreiros encontrarem o quarto integrante da equipe”, comenta. Na trama do filme, os guerreiros criam desenhos e seus traços ganham vida, saem dos papéis, incluindo o “vilão-pássaro” Voarag (chamado de bico-de-ferro na HQ).

Glauber, o líder do grupo, é o recruta e o guardião de uma pasta que abriga as ilustrações de todos. É também o mais inventivo e aparece usando uma cartola mágica. Kivison é o ágil, o “tirador de onda”, faz movimentos de capoeira e hip-hop e faz uso de arco e flecha. Vítor é o mais atrapalhado, mas é quem tem mais sede de aventura. É o escudo da turma. Por fim, Will, o dono da espada, é o mais sério e o mais velho do quarteto. A parte que fica no limiar entre fantasia e realidade.

O mais interessante, porém, é que essas armas mágicas, na verdade, são utensílios e objetos do cotidiano. O escudo é uma tampa de panela. A espada é um guarda-chuva. O arco é um pedaço de mangueira curvo. Prezando pelo olhar lúdico das crianças, o som do filme se comporta pela percepção dos personagens, não reproduzindo os barulhos originais. As imagens também. Por exemplo, quando uma “flecha” é atirada, ela voa pelo céu em formato de animação. “As cenas foram gravadas pensando nisso. Daí, a gente fez várias dinâmicas com os meninos para eles se movimentarem imaginando coisas invisíveis. Usamos ainda técnicas de teatro e dança para fazer eles se soltarem e criarem coreografias de luta”. 

Confira os bastidores das gravações:

Sem uso de recurso chroma key, o filme foi todo rodado ao ar livre, na Ilha de Santa Terezinha, entre maio e setembro de 2017. Na etapa de pós-produção, na qual se encontra neste momento, conta com técnicas de animação tradicional (desenho a desenho), na feitura dos poderes e magia; e cut-out (quando há formas e elas vão se movendo), na das criaturas. Sem data de estreia, a previsão é de que a obra seja concluída ainda na segunda quinzena de julho. “Meu plano é fazer uma estreia nos cinemas e depois inscrevê-la no maior número possível de festivais”, afirma, atentando para a questão de que a produção não é tecnicamente impecável. “As únicas pessoas de cinema na equipe eram eu e um técnico de áudio, e nem sempre ele tinha como comparecer às gravações. Os outros eram amigos, parentes, vizinhos...”. A parte da animação ficou por conta de membros da produtora Viu Cine, na camaradagem.

O quadrinho

Com 20 páginas, a HQ, por sua vez, foi lançada digitalmente e está disponível em plataformas online como IssuuWebtoons, Tapas e Zinnes. As ilustrações são de Jota Mendes, e as cores, de Marília Feldhues. “Como eu sou roteirista de audiovisual, não de quadrinhos, precisei de ajuda nesse quesito. O roteiro é meu, mas o Ary Santa Cruz (do site Mistiras) fez alguns ajustes, como o fatiamento do argumento que eu tinha feito junto às indicações de diálogos”, aponta.

Direcionado para crianças de sete a 11 anos, tanto o quadrinho quanto o filme se pautam pelos gêneros de fantasia, aventura e ação, sendo pincelados, pontualmente, por momentos dramáticos acerca de questões como amizade e construção de identidade. As críticas sociais também aparecem, com leves menções ao machismo e ao porte de arma, revelando sutilmente os verdadeiros vilões de uma sociedade desigual.

Mesmo direcionado para crianças, o projeto não deixa de fisgar os jovens e adultos, saudosistas de uma infância analógica. “Não é mais comum se brincar usando a imaginação. Ou as crianças estão usando tecnologia ou fazendo algum esporte. Naquela época, a internet era discada, mas na Ilha a gente nem tinha isso, tudo chegava depois”, lembra, enfatizando que instigar essas crianças a compreender outras formas de vivências valeu toda a dedicação. “No começo, Vítor tinha preguiça até de ler uma página, depois de um tempo ele quem passou a vir atrás de mim para pedir texto”, conclui.

Em breve, o quadrinho deverá sair no papel, com impressão e montagem artesanal. A data da publicação, assim como a da estreia do filme, serão divulgadas na página oficial do projeto Guerreiros da Rua no Facebook.

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