Nenhuma outra cidade de Pernambuco vive momentos de felicidade tão intensos quanto Afogados da Ingazeira. Localizada a 371 Km do Recife, a ‘princesa’ do Pajeú encontrou no futebol um atalho para o progresso e fonte de orgulho dos cerca de 37 mil afogadenses, que sonham em ver a “terra de sol e de encantos mil” - como diz o próprio Hino - atrair as atenções também no cenário nacional.
O segundo maior município da microrregião do Sertão do Pajeú, que tem como principal atividade econômica a produção de carnes e agricultura, de fato, não conquistou troféu do Campeão Pernambucano de 2019. No entanto, o terceiro lugar da competição e o simbólico título de campeão do interior deram ao clube, batizado no final de 2013 com o nome da cidade, as inéditas vagas para o Brasileiro da Série D e da Copa do Brasil da próxima temporada, apenas em seu terceiro ano de disputa na elite estadual.
No fim das contas, não é nenhum exagero dizer que a Coruja se saiu como o time mais vitorioso na competição e agora mira novas conquistas e consolidação, sonhando em representar o estado com o mesmo sucesso, agora no futebol nacional.
“O grande diferencial do Afogados é que em toda decisão que tomamos na diretoria nós sempre analisamos o que é melhor para o clube. Vontades e desejos pessoais ficam de lado”, destaca Enio Amorim, gestor do futebol e um dos fundadores do clube. “Tudo começou com um grupo de amigos. A gente não tinha condições de pagar os R$ 127 mil de taxa na Federação (Pernambucana de Futebol). Um dos nossos conselheiros nos vendeu um terreno pela metade do preço, fizemos uma rifa e o vencedor nos doou o terreno de volta. Vendemos e quitamos de 50% da taxa, e com bingos, feijoadas e várias ações, a sociedade abraçou o projeto e conseguimos inscrevemos o time”, relembra.
Diego Ceará foi o artilheiro do Afogados, com seis gols. Foto: Cláudio Gomes/Afogados FC |
De lá para cá, Afogados da Ingazeira presenciou o crescimento meteórico do clube, em uma ascensão até então jamais vista em Pernambuco. Sempre progredindo em resultados, foram três participações na Série A2 até alcançar o acesso, em 2016. Permanência na elite em 2017, eliminação nas quartas de final em 2018, e enfim o auge desta temporada, com base em uma folha de custos mensais girando em torno de R$ 68 mil, eliminando até mesmo o Santa Cruz dentro do Arruda.
“O grande lance do Afogados foi o planejamento da diretoria. A montagem do elenco fez a diferença. Em cima disso, a gente conseguiu superar as dificuldades que são comuns a qualquer equipe intermediária. Comissão técnica, elenco de jogadores e a torcida da cidade entenderam a leitura da situação e conseguimos atingir os objetivos”, avalia o técnico Pedro Manta, fundamental desde as primeiras conquistas do clube, e projeta. “Essa Coruja vai voar ainda mais alto no futebol pernambucano.”
E exemplos não faltam para o Afogados se inspirar. No futebol brasileiro, a Chapecoense é o principal espelho de gestão entre ascensão e consolidação de representatividade no contexto nacional, até mesmo internacional. Da estreia na Série D, em 2009, à conquista da Sul-Americana de 2016, em um contexto de comoção pela tragédia aérea sofrida, a Chape cresceu em estrutura e ‘camisa’, e hoje disputa a sexta edição consecutiva da Série A do Brasileirão.
“Guardadas as devidas proporções, é possível dizer que a Chapecoense nos inspira, sim. As ascensões são parecidas. Não sei se algum outro clube de Pernambuco cresceu tanto em 5 anos ao ponto de conseguir chegar a uma semifinal de Estadual como o Afogados”, pondera Enio Amorim, vislumbrando novos passos estruturais para o clube.
“Se tudo correr bem e encontramos parceiros, vamos tentar adquirir um terreno ainda este ano para construir um centro de treinamentos. Aproveitar o bom momento com a torcida e conseguir doações de materiais de construção, sempre pensando em ter uma boa oferta de água. Precisamos de um campo de qualidade para desafogar também o município”, completa o dirigente.
A prefeitura de Afogados, inclusive, patrocina o clube e cede o espaço do estádio Vianão para os jogos da equipe. A parceria será ainda mais intensificada. O prefeito José Patriota é um entusiasta do clube, ao ponto de assistir às partidas e acompanhar a delegação em viagens, como na vitória histórica sobre o Salgueiro por 3x2, na decisão do terceiro lugar.
Em entrevista à Rádio Pajeú, ao final do jogo, Patriota admitiu que traçará um planejamento para ampliar a capacidade do estádio, que hoje comporta até 2 mil torcedores. “Teremos que sentar para cair a ficha e replanejar as condições do nosso estádio, como o clube vai jogar. É um salto muito grande e nós não podemos fazer feio e nem decepcionar a torcida. Pessoas que amam Afogados e querem ver o nome da cidade brilhando.”
Estádio Vianão pode crescer em capacidade de 2 mil para 10 mil espectadores. Foto: Cláudio Gomes/Afogados FC |
Enio Amorim também entende a pressão que o trabalho em conjunto passa a ter para manter os bons resultados. “Agora aumenta a responsabilidade do município. Uma coisa é participar de um Pernambucano. Agora, com o time disputando uma competição nacional como a Copa do Brasil, de repente pode desembarcar em Afogados um time grande da Série A, como o Corinthians, por exemplo. Despertaria a atenção do estado inteiro e do Nordeste. O nosso estádio é muito bom, iluminação e gramado impecáveis, mas é acanhado. Precisa se adequar à realidade que conquistamos”, justifica, antes de projetar a capacidade que considera como ideal para atender à demanda dos próximos anos.
“A CBF recomenda uma capacidade de 10 mil torcedores. E o Vianão tem espaço para crescer. Condições de ficar maior até que os Aflitos (capacidade para 16 mil pessoas). Do alambrado para a parede há um espaço muito grande. Na pior das hipóteses, se não conseguirmos ampliar em alvenaria, partimos para arquibancadas móveis.”
Tamanha empolgação é um reflexo do crescimento de patamar do clube em representatividade e, sobretudo, financeiro, onde só em cota de TV pela participação na Copa do Brasil receberá cerca de R$ 525 mil (ou até mais, com base nos valores pagos na edição 2019). Apesar disso, não há espaço para a imprudência na gestão. Os dirigentes mantêm o planejamento à risca, sem colocar ‘o carro à frente dos bois’, como costuma-se dizer no Sertão.
“Temos que fazer tudo com os pés no chão, para não afogar o clube em dívidas. Não podemos fazer como outros clubes e contratar mal ou jogadores medalhões que possam endividar o clube e gerar problemas na Justiça. Teremos oito meses para planejar a temporada e vamos crescer a folha de custos de R$ 65 mil para algo entre R$ 90 mil”, projeta o dirigente de futebol, ao traçar o objetivo para 2020. “Respeitamos todos até pela grandeza e tradição dos nossos futuros concorrentes, mas o Afogados tem feito coisas inimagináveis. Falando com os pés no chão, sonhar com o acesso (à Série C) ainda é sonhar alto demais, mas espero uma grande participação, pelo menos passando da primeira fase.”
De fato, surpreender dentro e fora de campo tem sido a tônica do projeto do clube e repetir o feito a nível nacional seria mais um passo em direção a um futuro de conquistas ainda mais expressivas. E tomando como base o Hino municipal, com jogadores, dirigentes e torcedores lutando firmes e de pé, os filhos da cidade não fogem ao dever. E persistindo a dedicação e o trabalho no clube, seja no arado, no malho ou no gramado, Afogados da Ingazeira terá a certeza de vencer.
Todo grande clube precisa da figura de um ídolo dentro de campo que reflita em sua imagem a história de conquistas da instituição. Essa tônica também se aplica aos clubes emergentes, como no caso do Afogados da Ingazeira. E o primeiro grande ídolo da Coruja do Pajeú atende por um apelido que também traz boas lembranças ao futebol brasileiro. Aos 42 anos, o atacante Bebeto não é o mesmo que comandou o Tetra da seleção brasileira ao lado de Romário, mas para o povo de Afogados, os serviços prestados à imagem da cidade também é algo digno de ser devidamente registrado.
Bebeto participou do acesso à Série A1 até as conquistas de 2019. Foto: Cláudio Gomes/Afogados FC |
O pernambucano José Roberto da Silva de Souza chegou ao Afogados da Ingazeira em 2015, quando participou da campanha que por pouco não conquistou o acesso à Série A1, eliminados pelo Vitória na semifinal. No ano seguinte, comandou a guinada para o acesso, já com o status de jogador mais experiente do elenco, com rodagem por clubes expressivos no Brasil e outros países da América Latina, como Alianza Lima do Peru e Racing da Argentina, o jogador enaltece a recepção da cidade, onde diz acumular mais de 50 jogos vestindo a camisa local.
"Nunca fui tão bem tratado como eu fui em Afogados da Ingazeira. Desde que cheguei, em 2015, senti uma atmosfera diferente de todos os clubes que joguei. Me trataram bem como atleta e como ser humano, tanto os torcedores, como diretores e jogadores. Foi de coração. Convivi em vários ambientes de futebol, mais de doze clubes, mas o Afogados foi diferente”, relata Bebeto, que corrobora com os dirigentes ao apontar a Chapecoense como um exemplo a ser seguido pelo clube sertanejo.
“Eu já joguei na Arena Condá pelo Avaí em 2008, quando lá só havia as cabines de rádio praticamente. Nem tinha tobogã atrás dos gols, assim como no Vianão. Já se via uma possibilidade muito grande de crescer. Quando retornei a Chapecó em 2010, vi os tobogãs erguidos e depois de um ano estava tudo de pé. Por que o Afogados não pode passar por esse processo? Por que não pensar nessa possibilidade?” Olho para o Vianão e vejo uma Arena Condá, uma Arena da Baixada”, destaca.
Apesar de ter participado em campo apenas da estreia da temporada, na vitória sobre o Petrolina, Bebeto foi peça chave no elenco, auxiliando também a comissão técnica. Com a aposentadoria anunciada e concretizada após a vitória sobre o Salgueiro, o ex-atacante foi homenageado pelos companheiros de equipe, e segue com projeto de se tornar membro da comissão técnica nos próximos anos.
“Isso já vinha sendo comentado comigo antes de encerrar a minha carreira. A possibilidade de me tornar um membro do grupo com, Enio e os demais dirigentes, fazer parte dessa cúpula do bem. Foi um time e uma cidade que me acolheram muito bem. Tivemos críticas, claro, mas a maioria das pessoas que passam por mim me elogiam. Só tenho a agradecer. Vou começar a fazer o meu curso de treinador”, comenta.
A partir de agora, o trabalho de Bebeto será de promover a construção de novas histórias de conquistas para o Afogados. Consequentemente, o crescimento de outros jogadores em seus vínculos com o clube, o que abre possibilidade para que novos nomes se destaquem pela Coruja. Situação que não desperta ciúmes no futuro membro da comissão técnica permanente da equipe.
“Isso pode acontecer, de algum atleta me superar, mas eu fico feliz. Sou apenas uma peça dentro do legado do Afogados. Tomara que outros jogadores tenham essa identificação com o time. Aqui o povo gosta de futebol, os dirigentes trabalham por amor. Isso que faz o grupo. O legado que deixo aqui é de amizade e dentro de campo.”