Desde que começou o curso de Direito, Eva Luana da Silva, 21 anos, decidiu que seria juíza. Escolheu estar do lado da Justiça, ainda que nem sempre isso tenha sido recíproco. Mas a Justiça decepcionou Eva no passado. Deixou-a à própria sorte. Aos 13 anos, quando denunciou o padrasto por estupro de vulnerável, a então adolescente foi forçada a retirar a queixa. Agora, aos 21, Eva voltou a denunciar os abusos sofridos no passado, compartilhando detalhes através do seu Instagram e fazendo com que o caso tivesse grande repercussão (leia depoimento na íntegra abaixo).
O sistema falhou com Eva nos seus 13 anos – e fez com que ela vivesse seu maior pesadelo por mais de oito anos. “Eu não tinha certeza se eu ia conseguir sair com vida, mas sabia que eu tinha que dedicar meu tempo a uma coisa que eu gostasse”, diz ela, hoje no 7º período. Estupros, agressões, torturas física e psicológica se tornaram a rotina da jovem e de sua mãe, moradoras de Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador (RMS).
Dizer que a história parece o roteiro de um filme de terror talvez nem dê a verdadeira dimensão do que Eva passou. Na terça-feira (19), quando a estudante publicou em seu perfil no Instagram um relato, em cinco partes, contando detalhes sobre o sofrimento dos últimos anos, as postagens viralizaram. Em pouco mais de 24 horas, uma das fotos chegou a ter 239 mil curtidas. Artistas como Kéfera e Alice Wegmann compartilharam as postagens.
“Meu caos teve início quando eu tinha 12 anos, minha mãe era agredida, abusada, violada e torturada quase todos os dias”, escreveu, em sua página. As agressões continuaram com sua mãe, mas evoluíram: além da genitora, o agressor passou a estuprar e abusar da própria enteada.
O agressor é apontado como Thiago Oliveira Alves, seu padrasto. Um paulista que veio morar na Bahia depois de ter sido preso por roubo de carro em São Paulo. Na casa de Eva, ele chegou devagar. Engatou um namoro com a mãe dela e decidiu passar uns dias na casa da família. ‘Uns dias’, no entanto, se transformaram em eternidade. Ele não saiu mais de lá, até o início deste mês de fevereiro.
Eva conta que, aos poucos, Thiago tomou conta de tudo. Da família, da casa, da loja de materiais elétricos que a mãe dela tem em Camaçari. Isso logo evoluiu para o controle de tudo que ela fazia na vida. Para onde ia, quando ia, com quem ia, como se vestia. Ela era obrigada a mandar fotos, praticamente em tempo real, de todos os lugares onde estava.
Aos 13 anos, quando decidiu denunciá-lo, foi com a mãe à delegacia. Estavam certas de que aquele terror acabaria. "Eu acho que denunciar (aos 13 anos) foi uma das piores situações que aconteceu comigo, porque eu confiei. Eu tinha certeza. Eu falei: mãe, vamos. E ela ficou super feliz por a gente estar indo. Quando a gente foi denunciar, a gente tinha saído de casa com muito medo, porque ele já tinha ligado. Ele disse que, quando chegasse em casa, ia fazer coisas muito piores do que tinha feito", relata Eva.
Antes de ir à polícia, porém, passaram a noite na casa de uma amiga que as apoiava. “Quando a gente estava na delegacia, ele foi para a casa dessa amiga. Invadiu a casa dela armado. Deu chute no portão e entrou com vários homens. E eu percebi: não posso ir para a casa de ninguém. O único lugar que eu tenho para ir é a delegacia. Só que ele me ameaçou, me fez retirar a queixa e eu não consegui dar prosseguimento a isso”, contou, em entrevista ao CORREIO, na manhã desta quarta-feira (20).
Só que, a partir dali, as coisas só pioraram. A quase denúncia “deu em nada” e resultou em ainda mais sofrimento. “Ali eu perdi a minha alma. E o que eu fui denunciar, 1 ano de sofrimento, se multiplicou em mais 8 anos”, narrou Eva, em seu Instagram.
A sociedade achava que eles formavam uma família perfeita, mas a realidade era outra. Eva conta que foi obrigada a comer uma pizza tamanho família e beber dois litros de refrigerante em 10 minutos. Como não conseguiu, levou socos no rosto. Recebeu chutes até cair no chão.
“Ele enfiou as pizzas na minha boca me chamando de animal, eu vomitei e comi meu próprio vômito. Meu gato comeu um pedaço e lambeu outro, ele me obrigou a comer o que ele havia lambido. Eu apanhei a noite toda e no outro dia eu tinha que fingir que nada havia acontecido”, escreveu.
Eva não podia ter amigos, muito menos namorado. O agressor tinha total acesso ao seu celular, inclusive às mensagens do WhatsApp. Todas as suas senhas eram monitoradas por ele. Durante os estupros, era agredida. Engravidou dele e abortou mais de uma vez. “Nunca pude ir ao médico pra fazer curetagem. Todas as vezes sangrava e passava mal a noite inteira. Já vi bebês inteiros no vaso sanitário”, diz.
Todo o dinheiro da casa era entregue a ele. Houve noites em que foi forçada a dormir na casa da cachorra e em que passou horas sem comer. Tinha que ficar madrugadas inteiras em pé, até o dia amanhecer. Eva foi até mesmo obrigada a sair nua pela rua, à noite. O agressor dizia que era para ela ser estuprada por outros homens.
Quando fez vestibular para Direito, foi aprovada em mais de uma universidade. Passou na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), na Unijorge e até na Universidade de Coimbra, em Portugal, que aceita a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Mas foi Thiago quem escolheu onde ela iria estudar: na Faculdade Metropolitana de Camaçari (Famec), onde ele já fazia o curso há um semestre.
Queria vigiá-la. “Ele ficava me olhando na porta da sala. Às vezes, entrava e pegava o meu celular de surpresa e levava. Ele definiu que eu tinha que estar lá”, revelou, em entrevista. Na faculdade, Eva era obrigada por Thiago a fazer seus trabalhos. Tinha que sair mais cedo de sua própria aula para, pelo celular, responder às questões das provas dele.
Em agosto, começou a estagiar no Fórum de Camaçari. Naquela época, Eva não sabia, mas seu destino estava começando a mudar. Foi quando conheceu Mateus Cascais, o jovem que, mais tarde, se tornou seu namorado. “Ele já tinha tentado se aproximar de mim várias vezes, mas eu sempre dizia: ‘não, não fala comigo’. Mas todos já percebiam que tinha algo de errado”, lembra.
Ela se sentiu, finalmente, segura para desabafar. Contou tudo. Implorou para que ele não fizesse nada. Disse que já tinha denunciado e isso só piorou as coisas. Só que Mateus pediu ajuda ao juiz da vara, sem contar que era Eva quem passava por aquela situação.
"O doutor foi bem claro com ele. Falou: ‘e você vai deixar isso continuar?’. Ele se sentiu no dever de ajudar mais, mas não podia tirar minha autoridade porque era minha vida. Conversou comigo até me convencer que eu fosse falar ao juiz que era eu”, disse Eva.
Com ajuda do juiz, registrou uma queixa na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Camaçari no dia 30 de janeiro. Naquele mesmo dia, não voltou mais para casa. Foi acolhida e levada para um lugar seguro, com ajuda de uma de suas professoras – Maria Cristina Carneiro, que hoje é sua advogada.
O padrasto espalhou, por toda a cidade, que a enteada estava desaparecida. Sites de notícia locais chegaram a publicar notas sobre o suposto sumiço. No dia seguinte, dia 31, ele e a mãe de Eva foram intimados a comparecer à delegacia, para prestar depoimento sobre o desaparecimento. Lá, a delegada contou tudo à mãe da jovem.
Segundo a advogada da estudante, Maria Cristina Carneiro, Eva está, desde o dia 3, com uma ‘mãe social’ – uma pessoa designada pela Justiça para acolher alguém em situação de vulnerabilidade.
“Nunca vi uma história tão macabra como o sofrimento dessa menina. Por isso, vamos fazer o que estiver ao nosso alcance para que ela fique sob a minha guarda e a minha proteção”, disse a defensora.
A mãe de Eva também foi levada para um abrigo, assim como sua outra filha, de seis anos. A advogada acionou o Ministério Público do Estado (MP-BA), através da promotora Márcia Teixeira, coordenadora do Centro de Apoio aos Direitos Humanos do órgão. Em seguida, o MP acionou a Superintendência de Ação Social do estado para colocar a mãe e a irmã da estudante de Direito em um lugar seguro.
“Esse caso, para além de Eva, nos mostrou o quanto é frágil o acolhimento, ainda que funcione. Precisamos pensar um acolhimento e abrigamento mais humanizado, para ter um fluxo mais sistematizado”, diz a promotora.
No dia 31 de janeiro, a Justiça concedeu uma medida protetiva para que Thiago não se aproxime das três mulheres. No entanto, segundo Eva, há testemunhas de que ele tenha quebrado a medida, tendo ido à casa delas mais de uma vez. O padrasto só foi preso no dia 13.
Ele, que era assessor técnico da Secretaria Municipal de Habitação de Camaçari desde o dia 16 de janeiro, foi exonerado no dia 1º de fevereiro. Tanto o órgão quanto o titular da pasta, Júnior Borges (vereador licenciado), publicaram notas de repúdio a Thiago nesta quarta-feira (20).
De acordo com o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA), o processo corre em segredo de justiça.