Está na pauta da Câmara dos Deputados desta terça-feira (17) discutir a regulamentação do homeschooling ou educação domiciliar. O tema é bastante polêmico. É uma das prioridades do governo Bolsonaro.
Para a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a educação domiciliar é inconstitucional e afronta o direito à educação e a própria democracia. Em nota técnica, a organização aponta 10 motivos para ser contra a medida.
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"A regulamentação da educação domiciliar representa um risco ao direito à educação, pois ela pode aumentar as desigualdades educacionais e sociais no Brasil, aumentar a violência e desproteção de milhões de crianças e adolescentes. Somos contrários ao mérito da proposta", destaca a coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda.
Veja a baixo os principais pontos da nota técnica:
1. Da massiva contrariedade à educação domiciliar
Em abril do ano passado, a coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, participou de audiência pública sobre o tema, levando um mapeamento em que 142 entidades de diversos espectros políticos até então haviam se posicionado contrárias à prioridade e/ou ao mérito da proposta, sendo 14 dessas redes de abrangência nacional. Em maio de 2021, mais de 350 entidades, inclusive a Campanha, se manifestaram contrárias à proposta.
2. Do posicionamento da Campanha
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação considera que autorizar e regulamentar a educação domiciliar colocará em risco o direito à educação como direito humano fundamental e aumentará a desigualdade social e educacional no nosso país, assim como colocará em risco de violências e desproteções milhões de crianças e adolescentes.
A regulamentação será fator agravante da crise que vivemos e há uma série de medidas e investimentos a serem feitos com urgência e nenhum deles passa pela regulamentação do homeschooling. Somos, portanto, contrários à prioridade da regulamentação da educação domiciliar e à pauta, no mérito.
3. Da prioridade à legislação vigente para a implementação e o orçamento públicos
No que se refere ao orçamento disponível para execução de uma nova política educacional, a educação domiciliar não é prioridade. Temos R$ 63 bilhões a menos na LOA (Lei Orçamentária Anual) 2022 do que deveríamos para garantir o piso mínimo emergencial.
Ou seja, o orçamento disponível sequer é suficiente para o cumprimento do Plano Nacional de Educação, tendo sido exigido inclusive esclarecimentos da ONU sobre sua não implementação e para cumprir com o cenário emergencial.
Não há espaço para aprovar uma nova política, que atende à demanda de um grupo pequeno e que exige desvio da dedicação orçamentária para planejamento, monitoramento, avaliação, e sistema dedicado.
4. Da prioridade ao enfrentamento emergencial dos impactos da covid-19 na educação e na proteção de crianças e adolescentes
O contexto da pandemia parece não sensibilizar parlamentares, ministros e nem as famílias educadoras. Por isso, apontamos brevemente que temos em situação de exclusão escolar 5,5 milhões de crianças e adolescentes em todo o território nacional, ou seja, sem matrículas ou vínculo com escolas.
Ainda, no mundo todo a pandemia de Covid-19 deixa as metas de erradicação da fome ainda mais distantes e o cenário no Brasil não é diferente. O desemprego atingiu 14,1% em novembro de 2020, 52 milhões de pessoas estão na pobreza e 13 milhões em situação de miséria.
Mesmo com este cenário, argumenta-se que a demanda de uma minoria de famílias seria prioridade na pauta de educação do país, o que é inaceitável e contrário aos princípios de bem comum, de equidade, e de direito.
5. Da prioridade absoluta das crianças e adolescentes e da discussão legal
A criança, o adolescente e o jovem são sujeitos de direito e não devem ser negligenciados, pois tanto a Constituição Federal de 1988 como o Estatuto da Criança e o Adolescente definem que eles são prioridade.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 9.394/1996, disciplina, de acordo com o art. 1o, § 1o, a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias, dando sentido sistemático ao postulado constitucional (art. 205) e legal de que a educação é atribuição do Estado e da família.
Em recente julgado, o STF esclareceu que o entendimento que conflita a missão dos pais e da escola é juridicamente equivocado. Não há conflito jurídico, portanto, entre o direito das famílias de educar seus filhos - segundo seus valores, razões, crenças - e os processos de ensino regulados pelo Estado que, pela estrutura social brasileira, sua persistente desigualdade, discriminações estruturais, violências e exclusões, deve acontecer na escola.
6. Do mérito: inversão sobre o direito das famílias e/ou responsáveis versus de estudantes/do cumprimento com a liberdade das famílias de escolha da instituição escolar, de participação nas construções político-pedagógicas, e de religião
Usar o argumento do direito dos pais para retirar dos filhos o direito à educação escolar, para além dos processos formativos culturais, morais e religiosos que ocorrem no seio familiar, é afronta direta ao modo como o direito à educação foi pactuado em nossa Constituição, sua vocação para a formação de cidadãos autônomos e aptos ao convívio democrático com a diferença e a pluralidade.
Segundo artigo da Procuradora Maria Mona Lisa Duarte Aziz, a Corte Europeia de Direitos Humanos entendeu que a frequência escolar compulsória não viola a liberdade religiosa, tampouco o direito de educar os filhos, uma vez que tais liberdades restam asseguradas através do direito de escolher a instituição de ensino na qual essas crianças vão estudar e do direito de recusa a frequentar as aulas de religião, que não podem ser obrigatórias.
A legislação brasileira está em sintonia com tais marcos internacionais. Em nenhum momento a legislação presume interferência do Estado na educação das famílias.
O que a legislação pretende com o ensino obrigatório em instituição escolar pública ou particular, laica ou confessional, comunitária ou filantrópica, conforme escolha da família e/ou responsáveis, é que a criança seja supervisionada, cuidada, observada, conhecida, entre outros objetivos, e de forma alguma negligenciada pelos adultos com os quais ela convive.
7. Do mérito: da gestão democrática e do direito dos estudantes de serem respeitados, de contestar critérios avaliativos e de participar da construção de sua educação
O Estatuto da Criança e do Adolescente informa que:
Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - direito de ser respeitado por seus educadores;
III - direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer
às instâncias escolares superiores;
IV - direito de organização e participação em entidades estudantis
Não é possível assegurar tais direitos sob a educação domiciliar. É princípio fundamental do direito à educação a gestão democrática, garantindo, portanto, aos sujeitos da educação a construção crítica do processo educacional.
Deste modo, a educação domiciliar não poderia ser utilizada como alternativa para uma educação de qualidade, posto que a qualidade deva ser discutida no bojo da gestão democrática e participativa do processo pedagógico. Exemplo disto, é que os estudantes foram pouquíssimo incluídos na discussão desta proposição.
8. Do mérito: do direito à educação
A educação domiciliar impossibilita:
- A educação como prática da liberdade;
- A formação científica e pedagógica das e dos educadores e o deslocamento da responsabilidade para o autodidatismo dos estudantes;
- A educação inclusiva;
- A garantia do direito à educação pública e facilita a privatização da educação
9. Do mérito: dos riscos à proteção integral da criança e do adolescente
A educação domiciliar, para além de caminhar na contramão do arcabouço legal existente hoje para a garantia do direito à educação, ainda apresenta outros sérios riscos para a proteção da criança e do adolescente. Hoje, altas taxas de violência e abuso sexual e de trabalho infantil acontecem dentro do ambiente familiar e doméstico.
Segundo as estimativas do Ministério da Saúde, 68% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes acontece em ambiente doméstico.
Em relação à autoria, os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 apontam que em 84,1% dos casos o autor era conhecido da vítima, o que, segundo o documento, sugere um grave contexto de violência intrafamiliar, no qual crianças e adolescentes são vitimados por familiares ou pessoas de confiança da família, muitas vezes por pessoas com quem tinham algum vínculo de confiança. Inúmeras são as crianças e adolescentes vítimas de violência intrafamiliar no Brasil.
De acordo com os dados do Disque 100, evidenciou-se que mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados por pais, mães, padrastos ou outros parentes das vítimas.
Ainda de acordo com os dados do anuário, 64% dos estupros ocorrem nos horários da manhã e tarde, ou seja, turnos em que as vítimas poderiam estar na escola.
A escola tem sido também espaço de identificação, denúncia e proteção das crianças e adolescentes das múltiplas violências, sobretudo da violência sexual, que por acontecer em âmbito privado e por violadores próximos das vitimas, são mais difíceis de serem denunciados por elas, que costumas ser ameaçadas pelos agressores e desacreditadas pelos adultos próximos.
Assim, as instituições escolares e seus professores têm tido papel primordial no combate a violência e proteção dos e das estudantes.
Ainda, crianças e adolescentes estão também expostos em casa ao trabalho infantil doméstico. O trabalho infantil doméstico é uma das piores formas de trabalho infantil e consta da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Decreto 6.481, de 12 de junho de 2008).
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD 2016/IBGE), do universo de 2,4 milhões de trabalhadores infantis, 1,7 milhão exerciam também afazeres domésticos de forma concomitante ao trabalho e, provavelmente, aos estudos.
A exploração sexual também é considerada uma das piores formas de trabalho infantil. O trabalho infantil doméstico também é uma das piores formas. Mais de 90% das exploradas são meninas e cumprem dupla jornada. 83,1% também realizam afazeres domésticos nas próprias casas.
Caso se autorize a educação domiciliar, o risco se agrava pois são reduzidas ainda mais as perspectivas de contrapesos para controle, identificação ou proteção dessas crianças e adolescentes.
10. Considerações finais e da ameaça à democracia
O Estado, até mesmo por suas características, não é uma instituição onisciente e onipresente, ainda mais com as dificuldades nos orçamentos de políticas sociais que enfrentamos atualmente. Por isso, mais difícil se torna fiscalizar, acompanhar e certificar famílias e casas, que são ambientes privados, logo, não estão abertos para escrutínio de funcionários públicos.
Assim sendo, a presente nota expõe todas as dificuldades de se regulamentar o ensino domiciliar no Brasil, desde a questão orçamentária, legal, até as condições para sua realização, como criação da plataforma digital e fiscalização dessas famílias.
Por fim, a defesa da educação domiciliar é sintoma de uma sociedade cada vez mais individualista que desacredita nas construções coletivas, como a educação.
É também resultado de um processo de isolamento ocasionado pela falta de reconhecimento do outro. Demonstra ainda a incapacidade da sociedade atual de produzir meios de convívio que conduzam a melhores formas de participação pública, tão fundamentais para o fortalecimento da democracia.
Consequentemente, defender a educação domiciliar é negar que a educação está diretamente relacionada com a formação de uma sociedade plural e mais inclusiva, que aceita as diferenças e a diversidade de concepções. A educação domiciliar, portanto, é contrária à própria democracia.