Sim, as cotas modificaram a cara das universidades federais. Jovens pretos, pardos, indígenas, de baixa renda e com deficiência, antes com pouco acesso ao ensino superior público devido sobretudo à concorrência desigual com colegas egressos de escolas privadas, passaram a ocupar mais vagas. Dez anos depois da lei federal 12.711, de agosto de 2012, que instituiu a obrigatoriedade das instituições reservarem metade das vaga para quem estudou na rede pública, a legislação deve passar por uma revisão.
Não há um prazo de validade para a lei. Mas um artigo nela indica que necessita passar por uma avaliação ao completar uma década. Não há certeza se o debate acontecerá ainda este ano - as eleições para presidente, deputados e senadores podem adiar a discussão para 2023. Mas é consenso entre reitores, movimentos sociais e educadores que não tem como retroceder. A lei precisa permanecer para continuar democratizando o ensino superior ao ampliar o acesso ao menos favorecidos.
Mas também é senso comum que necessita de ajustes. Um deles é vincular a assistência estudantil à lei. Diante de um cenário de cortes de verbas federais para as universidades e contingenciamento de recursos, a preocupação é não ter como manter o apoio para permanência dos cotistas nas universidades. Porque também está constatado que a promoção do acesso deve estar vinculada a políticas que assegurem a continuidade do estudante cotista para que consiga concluir a graduação.
A pernambucana Marcela Lukerli vai te tornar médica ano que vem. Flávia Santos, também em 2023, será engenharia de pesca. Ana Beatriz Cardoso ganhará o diploma de dentista no próximo mês de outubro. Adenilton Guedes é advogado.
Quatro jovens pernambucanos favorecidos pelas cotas. São exemplos da importância de reservar vagas para quem estudou na escola pública, é de baixa renda e integra o grupo de pretos e pardos. Mas eles só chegaram até aqui porque além de muito esforço e apoio da família, tiveram algum tipo de auxílio financeiro das universidades.
Leitor assíduo, Adenilton Guedes, 26 anos, se frustrava porque as bibliotecas das escolas estaduais onde estudou nos ensinos fundamental e médio normalmente estavam fechadas por falta de funcionários. Aproveitava os livros que uma tia, empregada doméstica, trazia porque haviam sido descartados pela patroa.
Somente quando começou um estágio no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no Cais do Apolo, área central do Recife, quando cursava o 1º ano do ensino médio, é que ele conseguiu ler o tanto que desejava: lá existe uma biblioteca repleta de exemplares.
"Fez muita diferença na minha vida. Tive acesso ao capital cultural de que eu precisava para passar em provas concorridas. Comecei a enxergar ali que poderia sonhar em ingressar num curso disputado como direito", conta Adenilton, filho caçula de um serralheiro e uma dona de casa.
Aprovado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sofreu nos primeiros meses da graduação pois tinha pouco dinheiro para comer e pagar passagens de ônibus. "Mesmo desgastado emocionalmente e fisicamente, sempre estudei muito. Gostava de estudar os assuntos antes do professor dar a aula", diz Adenilton.
No segundo semestre da graduação, passou a receber uma bolsa. Assim, mesmo ainda com dificuldades, pôde se dedicar às aulas. "Não se pode falar em cota sem assistência social ao estudante", comenta o jovem advogado.
"Uma vez uma professora de matemática disse, para minha turma de 3º ano, que não adiantava a gente aprender as fórmulas que ela tinha anotado no quadro porque éramos filhos de piniqueiras e entregadores de água. E que continuaríamos assim. Tenho 10 tios, somente dois com ensino médio. Minha irmã se formou em letras. Eu, em direito. Chegamos a um lugar onde ninguém da nossa família chegou. E estamos inspirando alguns primos", comemora Adenilton.
Flávia Kleityane Santos, 29 anos, mora na zona rural de Serra Talhada, no Sertão. Vive com os pais num assentamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Escolheu cursar engenharia de pesca na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) para ajudar sua comunidade. Está no 9º período.
"Mais de 90% das famílias são formadas por pescadores. Eles sabem a prática, mas eu poderei contribuir com o conhecimento teórico para aumentar a produtividade", diz Flávia. Seu pai estudou até o 5º ano do ensino fundamental e a mãe concluiu o ensino médio. Não ganham nem um salário mínimo de renda.
O câmpus da Rural em Serra Talhada fica distante 40 minutos do assentamento onde mora a estudante. Somente Flávia e outro jovem da comunidade estão na faculdade. "Se não fosse pela cota acho que não entraria na universidade", diz ela, que ingressou em 2014. Já deveria estar formada, mas reprovou algumas disciplinas.
Várias vezes passou o dia estudando com fome. Saía de casa às 6h. "Tomava café e ia pra universidade. Só comia de novo à noite quando voltava para casa", justifica. "É desgastante assistir às aulas ficando o dia todo sem se alimentar. Mas não desisti", afirma.
Atualmente Flávia recebe bolsa de R$ 345 porque é atleta: joga no time de futebol da UFRPE. "Pago a gasolina da moto para me deslocar até a universidade e me alimento. É apertado, mas dá. Pode demorar o tempo que for, mas vou me formar e levar o que aprendi para minha comunidade", garante.
Prestes a conquistar o diploma - se forma em odontologia em outubro pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - Ana Beatriz Cardoso, 28 anos, tem um plano. Quer dar uma vida mais confortável para mãe, técnica em enfermagem que às vezes trabalha 36 horas seguidas emendando um plantão no outro. Sabe que assim como foi na graduação, não será fácil. Para montar um consultório, por exemplo, não gastará menos que R$ 40 mil.
No ensino médio, a jovem sofreu com falta de professores na escola estadual que frequentou em Camaragibe, no Grande Recife. Quando não havia professor, a dificuldade era porque o docente de física dava aula de espanhol. O de matemática lecionava português. "Infelizmente a qualidade da escola pública ainda é precária", lamenta.
Beatriz queria ser médica. Tentou cinco anos seguidos. Conseguiu bolsas em cursinhos pré-vestibulares. Com as cotas nas universidades federais, foi aprovada em odontologia em 2017. "Chegou um momento da minha vida que eu tinha que começar uma faculdade pois precisava me formar. Entrei em odontologia e me apaixonei", assegura a estudante.
Na sua turma ingressaram outros dois colegas negros e de baixa renda, como ela. "Foi bom ver pessoas iguais a mim numa sala com tanta gente branca e de classe média. Infelizmente esses alunos desistiram depois do primeiro ano porque não tinham dinheiro para pagar o material que precisamos nas aulas práticas. Eu só não parei também porque minha mãe, tias, avó e primas fizeram cotas para arcar com as despesas", relembra.
Depois ela conseguiu estágios e bolsas da UFPE. Hoje recebe R$ 400 por mês. "Bate um pouco de desespero sem saber como será depois da formatura. Pretendo estudar para residência e mestrado. Não tenho renda para montar um consultório agora. Sei que terei que trabalhar muito. Mas preciso retribuir para minha mãe tudo que ela fez por mim."
Falta pouco para Marcela Lukerli, 26 anos, concluir o concorrido curso de medicina. Está no penúltimo ano da graduação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Ralou bastante para conquistar a vaga e manter-se na faculdade. Negra e pobre, o diploma será a resposta para aqueles que a desestimularam dizendo que pessoas de origem humilde como ela dificilmente conseguem se tornar médicas.
"O ideal é que todos tenhamos educação de qualidade, que nos prepare para o vestibular. Enquanto isso não ocorre, as cotas são essenciais para diminuir a desigualdade histórica de acesso às universidades, onde quase sempre quem consegue entrar é a classe média alta", ressalta a estudante. Escolheu a UFPB porque não obteve nota para aprovação nas instituições de Pernambuco. O desafio, portanto, foi ainda maior para estudar longe de casa.
O pai é vigilante e a mãe vende lanches na frente da UPA dos Torrões, Zona Oeste do Recife. "A cota possibilita o ingresso de pessoas pobres, pretas e periféricas, como eu, ao ensino superior de qualidade", observa Marcela. Enquanto estudava no cursinho pré-vestibular (foram três anos), precisou por vezes dividir o almoço com colegas. Lá percebeu a defasagem do ensino que teve na escola pública ao comparar o seu desempenho com o dos vestibulandos dos colégios privados.
"Sempre tirei boas notas na escola. Mas a rede estadual prepara pouco para o Enem. Foi frustrante para mim. Por isso o recorte racial também é importante, já que com a cota apenas de escola pública muitas vagas ficam com alunos dos colégios militares e de aplicação", diz Marcela.
"Fui morar em João Pessoa basicamente na fé. Juntei dinheiro para pagar aluguel por dois meses. Tive ajuda da família. Dividi apartamento com uma outra estudante que mobiliou a casa. Não tinha computador para fazer os trabalhos nem condições de comprar livros", relembra. Atualmente Marcela ganha duas bolsas que somam R$ 1.100.
Durante o curso, sofreu preconceito, questão que ainda persiste. "Escutei de um professor que por causa dos cotistas a qualidade da universidade pública ia cair", afirma. "Por ser negra sou vista com olhar de inferioridade. Às vezes o paciente acha que sou a pessoa da limpeza ou da enfermagem, nunca que pode ser uma médica."
Embora ela vá concluir o curso, a exclusão social entre os futuros médicos continua existindo. Para participar de todas as festas de formatura teria que desembolsar R$ 15 mil, valor impraticável para sua realidade econômica. Vai pagar R$ 4.800 para a colação de grau e sessão de fotos. "Minha maior alegria é saber do orgulho que minha mãe e minha família têm de mim. Com muita luta, choro e dedicação cheguei até aqui. Isso é o que mais importa", garante Marcela.