O escândalo da 123milhas que entrou no noticiário desde a semana passada quando a suspendeu a venda e emissão de passagens da linha “Promo” nesta sexta-feira (18), que tinham datas flexíveis de viagens deixando milhares de pessoas frustradas não tinha chance de se sustentar.
Os prejuízos ainda não foram dimensionados exatamente, já que a empresa não revelou quantos pacotes vendeu. Mas esse é mais uma dessas esquisitices que acontecem no Brasil e por várias vezes surgem apanhando incautos e investidores de boa fé.
Do ponto de vista do negócio a 123milhas é equivalente ao Avestruz Master, ao Boi Gordo e Telex Free para citar apenas três casos de marketing multinível como esse tipo de promoção que se apresenta para oferecer ganhos extraordinários aos investidores. O que diferencia o caso da 123milhas dos anteriores é que ela vendia viagens.
Entretanto, é importante entender que, assim como as três citadas anteriormente, elas surgem e fazem tanto sucesso que as autoridades fiscalizadoras acabam sempre apenas correndo atrás sem que possam, efetivamente, proibi-las já no nascedouro.
E por mais inusitado que isso possa parecer, a ideia de comprar e vender milhas nasceu no Recife quando um executivo começou a ajudar os amigos a trocarem suas milhas por passagens. Ele acabou deixando a empresa e organizando um pequeno negócio tocado como uma microempresa que logo começou a se destacar.
O empresário Patrício Silva, se tornou o presidente da EloMilhas, que passou a operar no mercado de milhas de programas de fidelidade apenas reunindo as milhas das companhias e trocando-as por passagens.
Veja a entrevista de Patrício Silva
Ele foi um dos entrevistados do programa 2+1 Economia de um jeito fácil, em 2017, quando revelou que uma empresa de Minas Gerais, a Hot Milhas que já estava mais estruturada e mirando se transformar numa Agência de Turismo Online OTA (Online Travel Agency) como veio a acontecer com a 123 Milhas que ainda não estava no mercado. A EloMilhas não existe mais. Ela saiu do mercado em 2019, também devido a problemas pela não entrega de passagens.
O que diferencia a EloMilhas da 123milhas é apenas o tamanho do calote. A Max Milhas, como se sabe, cresceu e fundiu-se com a 123milhas, em janeiro deste ano, anunciando um negócio que somaria R$6 bilhões.
Mas desde que as empresas aéreas começaram a ver o seu programa de milhagem transformado num negócio de terceiros sem que pudessem cortá-lo imediatamente, a atuação das Agência de Turismo Online se tornou um problema das companhias brasileiras.
Mas assim como foi a criação do cheque-pré-datado - que virou o cartão de crédito parcelado derivando para a extorsão das taxas de juros cobradas no refinanciamento das compras no crédito rotativo que o Banco Central quer acabar - o negócio OTA é uma estratégia que o mercado de transporte aéreo e de agência de viagens também desejam sua extinção.
O negócio brasileiro de compra e venda de milhas é único no mundo. Ele funciona como uma bolsa de negócios virtual onde as plataformas oferecem um ambiente para juntar quem quer vender e quem quer comprar milhas. No core-business das empresas de aviação comercial ele é um corpo estranho. Um fator de perda de receitas. Mas é um grande negócio de dados e vendas do e-commerce. Desde o ano passado que as aereas da Europa monitoravam as ativiadesdes das OTAs no Brasil
As pessoas não lembram que para que as transações sejam realizadas, os participantes precisam abrir dados individuais como CPF, login e senha de usuário dos programas de fidelidade. Esse acesso é coisa impensável em mercados como o americano, que consideram a prática invasiva.
E assim como as pirâmides ou as empresas de “marketing multinível” esse é um negócio que depende de publicidade. O ranking Agências & Anunciantes, anuário publicado pelo jornal Meio & Mensagem de 2021 aponta a 123milhas como o segundo maior anunciante brasileiros, com investimentos de R$1,28 bilhão.
Ela, junto com suas concorrentes, compraram R$ 2,37 bilhões em espaço publicitário.
E quem já pegou um avião no Brasil pôde ver que, na maioria dos corredores de acesso e salão de desembarque dos aeroportos brasileiros, a 123milhas era um anunciante de destaque.
Mas o negócio acabou sendo vítima de seu próprio sucesso.
O problema começou quando os clientes, estimulados pela publicidade das OTA, entenderam de programar viagens fazendo a procura nos sites das aéreas terem o dobro da procura de trechos. Isso nem sempre resultava na venda das passagens. Mas foi isso que desequilibrou o negócio das OTAs.
Poucas pessoas sabem, mas já faz décadas que as companhias aéreas rodam um sistema reservas cujo algoritmo define as tarifas em função da procura. Funciona assim: se um passageiro começa a procurar um destino, o algoritmo interpreta que ele quer comprar a passagem.
Se mais pessoas começarem a fazer a mesma procura, ele entende que tem mais gente querendo o mesmo assento e assim vai ajustando para cima a tarifa.
Esse é o mesmo algoritmo do Uber, por exemplo, que aumenta o valor da corrida nos momento de pico, a chamada tarifa dinâmica. E isso explica que uma passagem comprada uma semana antes da viagem custa às vezes seis vezes mais que o mesmo assento comprado 10 meses antes.
Nos mercados maduros, as empresas têm estratégias para lotar o avião oferecendo passagens a preços baixos. Por que o voo já está dando lucro, assim um passageiro a mais aumenta a rentabilidade do voo.
Mas no caso das empresas como a 123milhas, a procura artificial virou uma armadilha. Porque os milhões de clientes que elas atraíam primeiro, checavam o preço das passagens nas companhias de avião fazendo o algoritmo entender que havia uma super procura.
E como no negócio de avião não há lugar para amadores, as empresas logo incluíram um novo algoritmo que “também” aumentava o número de pontos necessários para pagar o resgate de um trecho.
Isso explica a frase “Devido à persistência de circunstâncias de mercado adversas, alheias à nossa vontade.” inserida no comunicado divulgado na sexta-feira, 18 de agosto, pela 123milhas.
O que a empresa chama de “circunstâncias de mercado adversas, alheias à nossa vontade” é uma forma política de dizer: "Gente, as aéreas aumentaram exponencialmente o número de pontos para que a nossa empresa comprasse sua passagem. E por isso estamos suspendendo temporariamente e não emitiremos as passagens com embarque previsto de setembro a dezembro de 2023 que vocês compraram fiado.
Ela, certamente, não vai emitir mais nenhuma passagem para sua linha PROMO. Primeiro, porque todo o sistema de proteção ao consumidor está em cima dela e, dificilmente, ela vai sobreviver. Depois, porque a Justiça tende a sufocá-la travando as movimentações bancárias. Terceiro, a busca pela compra de passagem normal - que lhe assegurava capital de giro - desabou.
É importante não ter ilusões sobre o futuro da 123milhas - e até de todo segmento surgido na esteira da OTA. Eles não têm lobby no Governo, Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), no Congresso onde as empresas aéreas têm canal direto com os deputados e senadores. Todos são novatos e nenhum tem ações na Bolsa. Na famosa Faria Lima eles sequer são conhecidos.
Em Brasília, ninguém conhece Ramiro Julio Soares Madureira Madureira, Cristiane Soares Madureira do Nascimento e Augusto Julio Soares. Mas todos sabem que é Jerome Cadier, CEO da Latam Brasil, Abhi Shah, CEO da Azul e Celso Ferrer, CEO da GOL. As chances dos “novatos” da 123milhas, Max Milhas, Hotmilhas e das demais são próximas de zero de sucesso.
Na verdade, o modelo 123milha não é sem considerar algo inovador. Aliás, no mercado de startups elas são consideradas “copycat”, uma empresa que clona modelo de negócio e funcionalidades desenvolvidas por outras.
E por mais argumentos que eles possam ter, o negócio de compra e venda de milhagem é uma atividade marginal ao de aviação comercial. Se, em todo o mundo, as companhias aéreas só podem emitir bilhetes dentro de um prazo máximo de 320 dias (por considerarem que diferentes fatores são capazes de impactar o preço dos bilhetes: o câmbio, o preço dos combustíveis, os tributos, a situação macroeconômica local ou global) como uma empresa que não é do ecossistema pode vender trechos e pacotes por mais de um ano?
Mas o prejuízo do consumidor incauto já está precificado. Sem fluxo de caixa, a 123milhas já disse que vai pagar com um voucher que permita ao cliente comprar passagens na própria 123milhas. É uma armadilha pois a 123milhas vai ter de pagar essa passagem a companhias aéreas com uma quantidade absurda de milhas.
No médio prazo, a 123milhas vai gastar todos os seus bilhões de milhas para, ao menos quitar, parte das dívidas. No futuro, ela também não terá mais esses bilhões de milhas hoje depositados nas suas contas porque terá gastado para entregar as que vendeu. E o capital que tem no caixa é insuficiente para segurar a empresa.
De qualquer forma, já está claro que a situação da 123milhas era capital de giro. Na verdade, o seu capital de giro acabou ou não era suficiente para pagar o que devia a seus clientes na conta Promo.
Qualquer analista de mercado sabe hoje que se esse valor fosse pequeno, a 123milhas suspendia a venda da Promo, pagava a conta com o seu caixa e seguia em frente, ainda que com dificuldades.
A promessa de que o cliente receberá em vouchers acrescidos de correção monetária de 150% do CDI, acima da inflação e dos juros de mercado, além de não ser suficiente para comprar o mesmo pacote entre setembro e dezembro expõe a crise da empresa.
No fundo, a 123milhas acabou sendo vítima da falsa demanda que criou para o mercado de passagens, o que acabou prejudicando não apenas seus clientes, mas os demais passageiros interessados em comprar uma passagem de avião. Talvez sua saída do mercado e a redução drástica da procura possa fazer o mesmo algoritmo das transportadoras entender que a demanda não está tão aquecida e reduza os preços aos níveis normais.
E sempre é importante lembrar que no setor de aviação comercial não existe lugar para novatos.