Não restam mais dúvidas de que, assim como diversas atividades, o transporte público urbano terá que se reinventar no pós-pandemia. Será premissa para tentar sobreviver. É algo urgente, imediato. E essa reinvenção passa pela disruptura de conceitos e limites, sustentada e estimulada por mudanças operacionais e jurídicas que já estão sendo discutidas e planejadas por gestores públicos e operadores. Tanto valem para o transporte por ônibus - operado em sua totalidade pelo setor privado - quanto para os sistemas sobre trilhos concedidos, realidade de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo.
CONFIRA AS REPORTAGENS DA SÉRIE O FUTURO DO TRANSPORTE PÚBLICO NO PÓS-PANDEMIA
O pós-pandemia exige financiamento social do transporte público
Intermodalidade é um caminho necessário e urgente
Um SUS para a mobilidade urbana no pós-pandemia
Essa é a discussão abordada no segundo dia da série de reportagens O Futuro do Transporte Público no Pós-pandemia, apresentada pela Coluna Mobilidade, e que faz um diagnóstico dos desafios a serem enfrentados pelo setor no próximo “novo normal”. Uma discussão necessária diante do risco de o transporte público - tanto ônibus como metrô - sofrerem ainda mais degradação e até redução de operação, deixando a população sem opção de deslocamento e as cidades engolidas pelo automóvel.
Por isso, a discussão sobre novas regras de remuneração do setor, parâmetros de operação, ampliação de possibilidades, busca de novas fontes de receitas extra-tarifárias e modelos de negócios têm ganhado forma entre planejadores, gestores e operadores do serviço de transporte. No caso do Sistema de Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana do Recife (STPP), as mudanças estão sendo formatadas pela gerência de planejamento do Grande Recife Consórcio de Transporte Metropolitano (CTM). Entre elas, a revisão do conceito de remuneração por passageiro transportado e do padrão de seis passageiros por metros quadrado, algo padronizado no sistema no pré-pandemia, mas que no “novo normal” será moralmente inadmissível.
“Sem dúvida é momento de muitas mudanças. A crise provocada pela pandemia acelerou um caminho da falência dos sistemas de transporte e, por isso, o “novo normal” vai precisar que alguém pague a conta. É preciso entender que o setor é feito para aglomerar. A equação receita e custo já não fechava e com as novas regras de distanciamento isso tudo vai piorar, sem dúvida”, confirma o secretário de Desenvolvimento Urbano de Pernambuco, Marcelo Bruto, quem gerencia o transporte público da RMR.
Resiliente diante do cenário preocupante que tem pela frente, o secretário não faz arrodeios na hora de elencar os possíveis caminhos futuros para o setor: “São quatro eixos, todos difíceis, que gestores, operadores e planejadores da área discutem e já sabem que terão que seguir por um deles. Redução de rede e frota, já que espera-se a perda permanente de demanda entre 20% e 30%. Rediscutir valor da tarifa, quem sabe onerando mais ou apenas o vale-transporte para poupar o trabalhador autônomo. Reduzir ainda mais um dos principais custos do setor - o de pessoal -, já que não podemos interferir no diesel, principalmente a função dos cobradores. E buscar formas de financiamento público para o transporte. Só que, nesse último caso, é preciso convencer a sociedade a pagar. Será que conseguimos?, relata e questiona Marcelo Bruto.
O financiamento público a que se refere Bruto viria sobre taxações pagar por toda a sociedade, usuária ou não do transporte. Taxas, por exemplo, sobre o ICMS, IPVA, licenciamento de veículos, entre outros. “Mas é difícil conseguir. Porto Alegre tentou, mas não conseguiu e segue tentando. O Rio de Janeiro também tentou, sem sucesso. É difícil”, argumenta. O sistema de ônibus da RMR já acumulou mais de R$ 155 milhões com a perda de receita das passagens durante os três primeiros meses da pandemia. Metade desse valor, entretanto, é abatido pela redução de custo dos operadores, já que apenas metade da frota está em operação. Nacionalmente, o prejuízo é de R$ 3 bilhões. No transporte sobre trilhos é algo parecido: R$ 2,6 bilhões.
PAPEL DO GOVERNO FEDERAL
Osvaldo Lima Neto, professor da Pós-graduação em Transportes e Gestão das Infraestruturas Urbanas da UFPE alerta que, antes mesmo de se pensar em novas regras de operação e remuneração dos sistemas de transporte, é preciso socorrê-los financeiramente. Sob o risco de ele não sobreviver no pós-pandemia. “E apenas o governo federal conseguirá dar esse socorro. Estados e municípios não conseguem. Até porque é o governo federal quem tem os recursos ou a capacidade de gerá-los. E há recursos. O governo federal acabou de socorrer os bancos com R$ 1,2 trilhões. Pode ajudar o transporte público sim”, alerta.
Segundo Osvaldo Lima Neto, o que precisa ser garantido em primeiro lugar é o funcionamento dos sistemas com as condições sanitárias exigidas. o que terá impacto direto na retomada da economia das cidades, Estado e do País em geral. “Isso é fundamental. Essa imagem de ambiente limpo precisa ser passada ao passageiro, a quem todos nós devemos muito porque são trabalhadores de serviços essenciais que precisam sair de casa. É importante considerar que o transporte público é essencial para a economia. Sem ele as cidades não se movem, o Brasil para. O setor empresarial - e não falo dos operadores não, me refiro aos empregadores de forma geral - também precisa entender essa necessidade e fazer pressão política junto ao governo federal para que a ajuda chegue”, alerta.
TRANSPORTE SOBRE TRILHOS
Em um cenário tão ruim quanto o do ônibus - o setor perdeu até agora R$ 2,6 bilhões em receita nos três meses de pandemia -, o transporte sobre trilhos também terá que enfrentar as mesmas rupturas. Inovações, conceitos mais flexíveis e virtuais são algumas das apostas. Outra solução sugerida por operadores e especialistas é a criação de Autoridades Metropolitanas de Transporte.
"A atual situação de restrição de mobilidade nas cidades, em função da pandemia do novo coronavírus, criou uma oportunidade de repensarmos a forma como organizamos a oferta de transporte, trazendo mais racionalidade e eficiência aos sistemas daqui em diante. Inovações trazidas neste momento poderão mudar a forma como trabalhamos e nos relacionamos, adotando conceitos mais flexíveis, inteligentes e virtuais para oferecer serviços com mais qualidade e menor custo para o cidadão. Para avançarmos, aproveitando este momento único na história, é fundamental o papel ordenador do Poder Público na reorganização do sistema, sendo um dos caminhos possíveis a criação de Autoridades Metropolitanas de Transporte, com o objetivo dar maior eficiência e melhor qualidade de serviço", defende Luis Valença, presidente da CCR Mobilidade, que opera as Linhas 4-Amarela e 5-Lilás do Metrô de São Paulo, o Metrô Bahia, em Salvador, e o VLT do Rio de Janeiro.
MANTER SISTEMAS BRT É DESAFIO AINDA MAIOR
Se não há dúvidas de que o transporte público brasileiro é uma das maiores vítimas da crise provocada pela pandemia do coronavírus, quando o recorte é sobre o futuro dos Sistemas de BRTs essa certeza é potencializada. Pensado para ser um metrô sobre pneus, com características de conforto e deslocamento que só o transporte sobre trilhos possui, os BRTs correm um risco ainda maior de serem descaracterizados ao ponto de acabar. Esse temor já é dominante, inclusive, entre os operadores não só de Pernambuco, mas do País - especialmente da RMR e do Rio de Janeiro. Foi a capital fluminense, inclusive, a principal vitrine da fase moderna do BRT, quando ele foi descoberto pelo Brasil em função das preparações para a Copa do Mundo de 2014. Embora Curitiba, no Paraná, já operasse, naquela época, o sistema há mais de 30 anos, foi a euforia administrativa para o mundial que estimulou algumas cidades e regiões metropolitanas a adotá-lo.
Lembrando que acabar o BRT representará um grande ônus político para a gestão estadual, ainda mais se for do PSB. Foram investidos R$ 400 milhões no sistema, que após seis anos ainda opera incompleto: R$ 198 milhões no Corredor Norte-Sul e R$ 196 milhões no Corredor Leste-Oeste, o mais bem conservado e que liga o Recife ao município metropolitano de Camaragibe. Ainda é preciso contabilizar o investimento nos veículos: 88 BRTs no Norte-Sul e 74 no Leste-Oeste, cada um comprado por R$ 900 mil. Além do custo operacional do sistema, com estações que gastam R$ 31 mil por mês.