A pandemia do coronavírus atropelou, literalmente, o transporte público coletivo brasileiro. Até a primeira quinzena de setembro, eram R$ 4 bilhões em prejuízos para o setor de ônibus e R$ 5,6 bilhões para o de transporte sobre trilhos. E as perspectivas para o futuro, no chamado pós-pandemia, são péssimas porque a demanda de passageiros segue em queda e, como ela é a sustentação financeira dos sistemas, as contas não fecham nem fecharão. Por isso, soluções que resgatem a confiança do usuário e que possam, de alguma forma, melhorar o serviço são necessárias. Urgentes, até. Nesse contexto, antigas ferramentas e modelos, apontados há muitos anos por especialistas em transporte, ressurgem para discussão numa sociedade que, talvez, esteja mais aberta a colaborar com o transporte coletivo brasileiro por reconhecer que os tempos pedem essa mudança. Sendo usuária ou não dos sistemas de ônibus, metrôs e trens. O escalonamento de horários das atividades econômicas é uma dessas propostas que ressurge. E será o tema principal da série de reportagens Escalonamento em Discussão, que a Coluna Mobilidade apresentará nos próximos quatro domingos.
MUITO ESFORÇO PARA UM RESULTADO INÓCUO
O escalonamento de horários de serviços e atividades econômicas para reduzir as aglomerações no transporte foi relançado à sociedade em uníssono pelos operadores e gestores do transporte público coletivo brasileiro. Pulverizar a concentração dos horários de pico do sistema, que, nacionalmente, representa o acúmulo, em apenas duas horas pela manhã e duas horas à tarde, de metade dos passageiros transportados durante todo o dia e noite. Esticar esse pico, fazendo as pessoas entrarem e saírem do trabalho em horas diferentes. Essa é a proposta. Na verdade, um pedido de socorro. E para toda a sociedade. Uma tentativa de explicar que o transporte coletivo no Brasil, da forma como é financiado - em quase sua totalidade apenas pela passagem - não vai aguentar se algo não for feito e que, o que é pior, entrará numa roda viva de perda de demanda pela falta de qualidade e falta de qualidade porque não tem demanda. E todos pagarão por isso. Usuários ou não. As cidades pagarão se houver uma fuga da população para o automóvel, por exemplo.
Mas o apelo não parece estar sendo ouvido. No País e em Pernambuco. É grande a reação contra a proposta do escalonamento. Nem mesmo a pandemia da covid-19 parece ter conseguido sensibilizar a sociedade civil organizada - empresários e empregadores em geral - de que o momento exige mudanças de hábitos e cotas de esforços de todos. Os setores econômicos no Estado entendem que o escalonamento é inócuo. Defendem que os benefícios serão muito pequenos para o esforço, que já há horários diferentes de entrada e saída de muitas atividades e que o problema do transporte coletivo é estrutural, devendo ser enfrentado pelo poder público. Argumentam que a sociedade pode ajudar, dando os caminhos e até indicando as fontes de recursos - mas o desafio é do Estado. Ou seja, devolvem ao poder público a responsabilidade de melhorar o serviço, como historicamente sempre foi. E, assim, voltamos às mesmas dificuldades.
Vozes dos setores que poderiam ser atingidos por um escalonamento - como o comércio, a indústria e serviços - afirmam que o momento é de redirecionar o planejamento das cidades a partir da estruturação do transporte público. E querem colaborar com a mudança. Não financeiramente, mas com ideias, orientações e expertise. “O escalonamento é inócuo. Primeiro, porque ele já existe na prática em vários setores e, mesmo assim, as aglomerações acontecem. Depois, porque o problema é muito maior. A causa dos problemas do transporte coletivo é que ele está completamente desestruturado. Precisamos de ações imediatas, mas, principalmente, de mudanças estruturais de planejamento e operação. Usamos os modais errados, não investimos no transporte sobre trilhos e não direcionamos o crescimento da cidade a partir dos eixos de transporte. Isso é que precisa ser discutido. E as 40 entidades empresariais que já integram o movimento querem e já estão colaborando com essa discussão”, resume o empresário Avelar Loureiro Filho, que lidera o recém criado movimento Pró-Pernambuco. Surgiu para ajudar na retomada do pós-pandemia e é formado pelo setor produtivo pernambucano.
Reforçando a corrente dos contrários ao escalonamento, no dia 9/9 a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de Pernambuco (Fecomércio-PE) colocou em dúvida os possíveis benefícios que o escalonamento de horários das atividades econômicas poderá trazer para melhorar o transporte público na Região Metropolitana do Recife. A pesquisa feita pela entidade constatou que já existia um escalonamento natural do deslocamento dos trabalhadores que usam o ônibus e o metrô no Grande Recife e que, mesmo assim, a grande mazela do sistema é a pouca oferta de serviço. Ou seja, faltam ônibus e trens para transportar a população. A Fecomércio indicou que o problema é de política de Estado e que apenas o Estado - buscando parceiros, é claro - poderá resolvê-lo.
“Não há mais o que escalonar. O comércio de bairro abre às 8h, o do Centro às 9h e o dos shoppings, às 10h. Ou seja, já praticamos o escalonamento. Na saída à noite, sem a segurança necessária não temos como ampliar o funcionamento para depois das 19h. Pelo menos no caso dos comércios do Centro e de bairros. E os shoppings já fecham às 22h”, pondera. O dirigente, entretanto, reconhece que, para o comércio do Centro do Recife, o transporte público é essencial. “70% das pessoas que vão ao Centro chegam de ônibus. Isso é muito importante. Sabemos que a pandemia desnudou muitos problemas e necessidades, como acontece com o transporte público. E sabemos que ele precisa melhorar para que as pessoas queiram entrar nele. Mas, de fato, não há mais o que escalonar”.
A PROPOSTA
A proposta do escalonamento foi lançada na RMR pela Urbana-PE - o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros. O objetivo é desafogar o sistema nos horários de pico para minimizar as aglomerações, situação que sempre foi empírica ao setor e que teria aumentado na pandemia. Segundo a Urbana-PE, a concentração nos picos (das 5h às 8h e das 16h às 19h) era 46% antes da pandemia, chegou a 50% com apenas serviços essenciais em atividade e atualmente está em 47,5%. Em julho era 48,4%. Mesmo reduzindo, a concentração sempre foi e seguirá sendo um problema do transporte coletivo urbano.
“Temos que pulverizar esses horários de pico para que o serviço possa ser melhor prestado. E só com a participação dos mais importantes setores da economia conseguiremos. A questão estrutural dos sistemas é importante e precisa ser discutida, mas precisamos de ações imediatas. O escalonamento ajudaria muito. Precisamos criar alternativas que possibilitem uma menor ocupação dos veículos. Temos que achatar a curva da demanda do transporte. Fazer com que se distribua de forma mais homogênea. Isso é urgente para a pandemia e ainda mais para o pós-pandemia”, explica Marcelo Bandeira, diretor de Inovação da Urbana-PE e quem está à frente da discussão sobre o escalonamento.
A proposta da entidade previa que o escalonamento fosse estudado e implementado por um comitê gestor misto - composto pelo poder público, operadores do sistema e representantes do comércio, da indústria, serviços e construção - e adotado tendo como base a capacidade da oferta do transporte público no Grande Recife. O escalonamento de horários é um dos tripés da proposta que a Urbana-PE apresentou ao governo de Pernambuco. Além dele, é sugerida a revisão do modelo de financiamento do transporte público, com uma menor dependência da arrecadação tarifária (de no máximo 60%) - ou seja, mais subsídios e receitas extratarifárias, o que inclui taxações do transporte individual. E a priorização viária do transporte público: mais faixas e corredores exclusivos para o ônibus.