Apesar de a rejeição à proposta do escalonamento de horários para aliviar a lotação do transporte público no pico ser forte, algo difícil de ser vencido, algumas cidades brasileiras conseguiram implementar a mudança e comemorar resultados. Mesmo que por pouco tempo. Outras, embora as regras tenham sido ignoradas pelo setor econômico e produtivo, ao menos experimentaram a vontade política de prefeitos em ajudar o transporte coletivo de suas cidades. Em comum, serviram de exemplo para o Brasil. Mostraram que é possível, sim, adotar o escalonamento. E que ele não é inócuo. São efeitos pequenos, mas eles existem e contribuem para pulverizar a concentração da demanda de ônibus, metrôs e trens, que na maior parte do País chega a quase 50% em apenas quatro horas do dia. Esse é o recorte da terceira reportagem da série Escalonamento em discussão, que a Coluna Mobilidade vem publicando para discutir as vantagens e desvantagens do modelo diante da crise provocada pela pandemia do coronavírus.
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EFEITO POSITIVO, MAS RÁPIDO
Fortaleza, no Ceará, é o melhor exemplo do escalonamento. Ou pelo menos foi. A capital cearense teve uma redução de até 26% nos horários de pico do transporte por ônibus depois que as primeiras determinações de horários foram feitas, a partir de junho, quando o País de forma geral começou a retomar, gradativamente, algumas atividades. A cidade experimentou o gostinho via decretos municipal - o transporte é gerido pela prefeitura - e estadual.
No pico da manhã, quando o desafio é maior porque a concentração de passageiros também é maior, o escalonamento de início de algumas atividades econômicas teria conseguido reduzir em 26% a demanda de passageiros. Já no pico do fim de tarde, a redução foi de 19%. A concentração nos ônibus de Fortaleza é de 40% em duas horas pela manhã e outras duas no fim da tarde.
Lá, usaram a Pesquisa de Origem e Destino 2018/2019 e definiram a participação de diferentes setores econômicos nos deslocamentos feitos ao longo do dia. Prefeitura e Estado atuando juntos. Enquanto atividades como construção civil e indústria passaram a iniciar às 7h, o setor de serviços começou a funcionar a partir das 8h, o poder público às 9h e o comércio às 10h. E a maioria encerrando as atividades às 16h e 17h.
Nada muito diferente do que foi e tem sido praticado no Recife, mas com a diferença de que lá houve uma alteração, de fato, do início das jornadas de todos os setores que impactavam o transporte público. Em Pernambuco, poucos setores tiveram essa imposição.
Mas o achatamento da curva de demanda durou pouco porque, a medida que os números da pandemia foram aliviando, a pressão dos setores pela ampliação dos horários foi aumentando. Atualmente, o sentimento é de frustração. Principalmente porque havia esperança de que o escalonamento pudesse virar permanente, como aprendizado da pandemia.
“É muito frustrante porque tivemos ganhos na prática. Vimos a concentração diluir um pouco. Era para ser um aprendizado, algo perene. Para o bem de todos. O setor de transporte é apontado por todos, constantemente. Mas no momento de ajudar, ninguém quer contribuir. O pico ainda não voltou a concentrar a demanda de antes da pandemia, até porque apenas 56% dos passageiros retornaram ao sistema. Mas está crescendo e sabemos que não haverá frota de ônibus nem dinheiro gasto que evite as aglomerações se a concentração nas quatro horas do dia continuar nesses patamares”, lamenta Dimas Barreira, presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado do Ceará (Sindiônibus).
Agora, o setor está na expectativa de que prefeitura e Estado consigam adotar um escalonamento de horários na retomada das aulas e do serviço público na cidade, dois setores que geram impacto no transporte e poderiam ajudar a pulverizar o pico de demanda.
EFICIENTE E OUSADA NO PAPEL, MAS NÃO NA PRÁTICA
Goiânia, capital de Goiás, foi a cidade que melhor definiu o escalonamento de horários para início das atividades econômicas no País, ganhando destaque nacionalmente por isso. Estabeleceu, inicialmente, cinco faixas horárias para o início de operação das atividades econômicas, ainda em junho. Mas não houve resultado. Foi então que criou uma nova proposta com 12 faixas horárias, distribuídas para cada setor econômico. Até as empregadas domésticas tinham horário para entrar no trabalho.
O plano de escalonamento, entretanto, ficou apenas no papel. Na prática funcionou pouco. E por algumas razões. Uma delas foi que faltou fiscalização para o cumprimento dos horários. Depois, talvez a principal razão, foi que a cidade de Goiânia adotou o escalonamento, mas as 17 cidades que compõem a Região Metropolitana não o fizeram. Assim, comprometeram os resultados para o transporte público já que o sistema opera numa rede única e integrada.
Quem vivencia o setor de transporte alega que essa foi a dificuldade. “O prefeito de Goiânia encampou a ideia, escalonou os horários das atividades, fez tudo direito. Demos o passo político. Mas só a cidade incorporou. As outras não. Tivemos reduções muito pequenas, de 3% a 4% na concentração da demanda nos horários de pico”, critica Leomar Avelino, diretor executivo da RedMob Consórcio, que reúne as concessionárias que operam o sistema de transporte por ônibus da Grande Goiânia.
Apesar de ser formada por 18 municípios, a maior parte dos 2.200 habitantes da Região Metropolitana de Goiânia estão concentrados na capital (1,5 milhão) e na cidade de Aparecida de Goiânia, com quase 600 mil moradores. Os operadores alegam que bastaria essa segunda cidade ter aderido ao escalonamento que os resultados poderiam ter sido bem melhores. “E o nosso transporte ainda tem outra característica que destaca a necessidade ainda maior do escalonamento: o nosso pico é concentrado em 1h, 1h15 pela manhã e a mesma coisa à tarde. Ou seja, a concentração é ainda maior do que no resto do País, por exemplo”, reforça Leomar Avelino.
Ressalva: A reportagem tentou, de todas as formas, conversar com os gestores públicos dos sistemas de transporte de Goiânia e de Fortaleza, mas não conseguiu entrevistá-los ou obter a visão deles sobre os acertos e erros dos escalonamentos adotados. As assessorias de imprensa repassaram fotos e algumas informações, mas sem a possibilidade de uma entrevista.
OUTRAS SOLUÇÕES ALÉM DO ESCALONAMENTO
Diante da quase palpável rejeição dos setores econômicos ao escalonamento de horários, outras soluções se fazem necessárias para tentar reduzir a superlotação do transporte público nos horários de pico do dia. A redução do preço da passagem no chamado fora pico e a oferta de serviços diferenciados, que possam atrair o passageiro disposto a pagar um pouco mais pela praticidade e conforto do serviço. São experiências que já estão sendo testadas há pelo menos dois anos no País e apresentado bons resultados.
Curitiba, capital paranaense, inovou na redução da tarifa fora pico antes mesmo da pandemia e do ressurgimento da discussão sobre o escalonamento de horários de início das atividades econômicas. Por volta de setembro de 2019, implantou a redução e, de acordo com levantamento divulgado no fim do mesmo ano pela Urbs (Urbanização de Curitiba), gestora do sistema, a medida teria provocado um aumento médio de 134 mil passageiros por dia útil nas seis linhas do projeto. O acréscimo registrado foi de 3 mil passageiros pagantes, em um mês (22 dias úteis). A passagem foi reduzida em R$ 1 nos horários das 9h às 11h e das 14h às 16h e para pagamento exclusivo com o cartão-transporte usuário.
“Isso ocorreu porque conseguimos trazer para essas linhas novos passageiros, que quiseram aproveitar a tarifa reduzida. O aumento do movimento, como esperávamos, possibilitou compensar a redução do valor da passagem”, diz o presidente da Urbs, Ogeny Pedro Maia Neto. O desempenho atual do projeto em meio à pandemia, no entanto, não foi informado pela Urbs.
Fortaleza (CE) também deu start em projeto semelhante no início de 2020, um pouco antes da pandemia do coronavírus começar. Reduziu em 20% a passagem nos horários fora do pico da manhã e da tarde (9h às 11h e 14h às 16h) do projeto Hora Social, que já oferece uma redução dos valores por duas horas do dia. O valor cobrado é de R$ 3,40 (inteira) e R$ 1,50 (meia). Com a nova redução, os passageiros passaram a pagar R$ 3,00 (inteira) e R$ 1,30 (meia).
ÔNIBUS SOB DEMANDA
Outra aposta é o uso da tecnologia para ofertar serviços diferenciados. Goiânia (GO), por exemplo, há dois anos opera o sistema CityBus 2.0, o ônibus acionado pelo app, também chamado maldosamente de Uber do ônibus. No fim de 2019, Fortaleza (CE) criou o mesmo serviço, batizado de TopBus+. Os dois sistemas têm dado certo e, mesmo durante a pandemia, seguiram operando. O CityBus 2.0, inclusive, teve ampliação da oferta. São o transporte sob demanda e por app, operado com veículos de pequeno porte (VPP), como sprinters. De forma geral, os passageiros podem solicitar a passagem do ônibus no seu endereço e o veículo altera a rota para atender a demanda ou, como é o caso de Goiânia, indica um “ponto virtual” próximo para o embarque. As rotas das viagens se integram conforme o pedido dos passageiros.
PERNAMBUCO ESTUDA MODELOS
Pernambuco ainda ensaia seguir por esses caminhos. No início de 2020, como resposta ao não reajuste das passagens, o Estado apresentou um pacote de ações que incluía a flexibilização e modernização do regulamento do Sistema de Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana do Recife (STPP/RMR). Seria a preparação legal do terreno para que ônibus por apps e tarifas reduzidas pudessem virar realidade.
No caso do desconto da tarifa fora-pico, uma proposta está pronta na Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Seduh), que gerencia o sistema de ônibus da RMR, mas a implantação foi adiada devido à pandemia. Segundo o secretário Marcelo Bruto, o governo decidiu aguardar provavelmente até o fim do ano para ter mais segurança do impacto sobre o sistema, já que não há mais previsibilidade da situação da demanda de passageiros. Em Curitiba, no entanto, o primeiro balanço da redução do preço no fora-pico indicou equilíbrio financeiro nas linhas incluídas no projeto.
Na RMR há propostas, inclusive, de tarifas proporcionais, como já aconteceu no passado, com a cobrança de valores de acordo com a extensão do trajeto feito pelo passageiro. O Consórcio Conorte, que opera na área Norte da RMR, está estudando o modelo junto ao governo do Estado.