A decisão de trazer todos os cobradores de volta para os ônibus da Região Metropolitana do Recife - decidida na última semana para evitar uma greve em meio à pandemia e prevista para vigorar a partir de 3/12 - precisa ser analisada sob várias óticas e, principalmente, percebida como uma solução provisória. Se por um lado representa talvez a maior vitória dos rodoviários até hoje, iniciada ainda em 2015, quando as primeiras linhas começaram a perder o cobrador, é também uma decisão pouco racional diante da evolução da tecnologia e cercada de uma fragilidade que, a qualquer momento, irá gerar uma nova guerra entre trabalhadores e empregadores. E, no meio dessa inconstância, está o passageiro, que é quem mais interessa. E quem, sempre, sempre, sempre, paga a conta. De tudo. De um jeito ou de outro.
Essa reportagem é um exemplo do quanto a discussão é complicada. Para discutir a necessidade de uma solução definitiva, construída de forma racional, que preserve empregos - principalmente em tempos de pandemia -, mas que também otimize custos do setor, o JC tentou ouvir diferentes atores. Mas não teve muito sucesso. O governo de Pernambuco, quem atendeu à exigência do Sindicato dos Rodoviários e determinou que todas as linhas operem com cobrador, silenciou via Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Seduh). A Urbana-PE, o sindicato dos empresários de ônibus, também. No máximo, repassou dados sobre o crescimento do uso da tecnologia para o pagamento da passagem, que mostram que 80% dos pagamentos na RMR são feitos com os cartões VEM.
Em meio a esse silêncio conveniente, a população se depara com uma guerra de narrativas, sem uma solução clara e eficiente. E perigosa, porque basta que a Portaria Número 167/2020 do Grande Recife Consórcio de Transporte Metropolitano (CTM) não seja cumprida a partir da próxima quinta-feira (3/12), para que a possibilidade de uma nova greve dos rodoviários volte a ser real. Tão real quanto foi na semana passada e que resultou na concordância, pelo mesmo Estado que em julho autorizou a retirada dos cobradores em toda e qualquer linha, independente de critérios técnicos, do retorno de todos os profissionais ao sistema.
O que se percebe, nesse contexto, é que nenhum dos atores envolvidos está, de fato, preocupado em melhorar o sistema de transporte público. Cada um vê apenas o seu lado e as conveniências políticas. Afinal, é impossível ignorar o fato de que o esforço para evitar a greve de motoristas e cobradores foi grande pelo governo do Estado, mas que ele também aconteceu a seis dias do segundo turno das eleições municipais. E, mais uma vez: no meio disso tudo, está o passageiro que precisa do transporte público para ir ao trabalho, à escola, ao médico, até o lazer.
Os únicos que falaram ao JC foram os rodoviários e o autor do projeto de lei que originou a lei que proíbe a dupla função de motoristas - quando eles, além de dirigir, atuam como cobrador, recebendo dinheiro e passando troco. Para Aldo Lima, presidente do Sindicato dos Rodoviários de Pernambuco, à frente da entidade desde dezembro de 2019, o retorno dos cobradores é algo que, além de representar justiça social por garantir o emprego de trabalhadores, só representa ganho para o passageiro e para a qualidade do serviço oferecido. E que não há possibilidade de os cobradores ficarem ociosos nos ônibus, refutando o argumento do setor empresarial de que isso acontece em muitas linhas que têm a predominância do pagamento eletrônico. “Os empresários mentem quando apresentam esses números do uso dos cartões VEM. São dados camuflados, eles burlam as estatísticas. Temos denúncias de motoristas que são orientados a reter o valor quando o passageiro paga em dinheiro e, posteriormente, registrar o pagamento com um cartão VEM carregado e entregue a eles anteriormente pelas empresas. Não são todas que praticam, é verdade, mas acontece. 95% das linhas ainda têm pagamento em dinheiro. Por isso, nunca o cobrador ficará ocioso”, argumenta.
O presidente dos rodoviários ainda defende que, mesmo que um dia a tecnologia seja predominante no transporte público da RMR - o que não acredita que aconteça porque o setor empresarial não investe como deveria - o passageiro sempre terá o direito de escolher como quer pagar a passagem, se com dinheiro ou de forma eletrônica. “Além disso, o cobrador auxilia o motorista na operação. É preciso lembrar de qual sistema de transporte estamos falando. Não estamos na Europa. Aqui é bem diferente. Nossos ônibus não têm sequer faixas exclusivas, entram em vielas na periferia que exigem manobras difíceis, nas quais o motorista precisa de ajuda. É o cobrador quem também ajuda e informa o passageiro. Há sempre necessidade dele nos coletivos. Sem falar do desemprego. Com a portaria, teremos pelo menos 2.500 profissionais de volta, quantia equivalente ao número de motoristas que atualmente exercem a dupla função”, afirma Aldo Lima.
Autor do projeto de lei que originou a Lei 18.761/2020, que proíbe a dupla função pelos motoristas de ônibus no Recife, o vereador Ivan Moraes (Psol) aponta dois outros aspectos que não justificam a retirada dos cobradores dos ônibus e destaca que a volta deles é uma conquista que vai além da categoria, é da sociedade, da cidade. “Nossos ônibus sempre tiveram cobrador. Novidade é não tê-los. Isso é o primeiro ponto. Os cobradores sempre fizeram parte do custo do sistema. O segundo aspecto é que o passageiro quer o cobrador no ônibus porque ele é importante para dar agilidade à viagem. O usuário quer entrar no coletivo e ver o motorista dando a partida. E, não, esperar que receba dinheiro, passe troco. Quer tirar uma dúvida sobre uma parada ou percurso e ser atendido. Quem anda de ônibus sabe disso”, afirma.
TECNOLOGIA
O vereador lembra, ainda, que a pouca tecnologia disponível não foi feita para beneficiar o cidadão - numa referência às poucas vantagens para quem utiliza a bilhetagem eletrônica nos ônibus. “Não há ganhos para quem paga a passagem de forma eletrônica, com os cartões VEM, por exemplo. Não há descontos, tarifas menores, bônus, nada. Ao contrário. Há taxas para tudo. Com poucas exceções, você paga para fazer a recarga. Isso não é bom para o passageiro
De fato, o que o vereador diz tem fundamento. De aliada, a tecnologia passa a ser inimiga do sistema por não ter a abrangência que deveria e cobrar taxas para tudo. Excluindo a recarga feita em dinheiro nos pontos fixos disponibilizados pela Urbana-PE - é o setor empresarial quem cuida da venda dos créditos eletrônicos e o Estado não intervém -, todo o resto tem taxas de no mínimo meia tarifa do Anel A.
Marcelo Bandeira, diretor de Inovação da Urbana-PE, reconhece que as taxas cobradas são um obstáculo a ser vencido no setor, que os benefícios oferecidos são periféricos e, por isso, defende a universalização do custo. “Defendemos que as taxas passem a ser desoneradas, ou seja, que sejam cobertas por todo o sistema. Hoje, quem paga é o usuário que utiliza a tecnologia, individualmente. Mas esse custo precisa ser coberto pela tarifa paga por todos ou por outra fonte. Existe um custo inerente à oferta dessa tecnologia. No comércio, por exemplo, é o comerciante quem arca, mas nós não temos como cobri-lo. Até porque não somos nós quem definimos a tarifa. Também sabemos que os os benefícios oferecidos atualmente são poucos e periféricos, como é o caso da integração temporal e da possibilidade de resgate dos créditos quando o cartão é roubado. Mas estamos investindo em novas tecnologias que irão permitir oferecer mais benefícios”, garantiu.
GOVERNO DO ESTADO
Na terça-feira (24/11), um dia depois do acordo que evitou a greve, o governo do Estado, via CTM, garantiu que a portaria será cumprida à risca, sem questionamento. “Vamos sim. A portaria assinada pelo presidente do CTM e publicada no Diário Oficial do Estado desta terça-feira diz isso e, a partir de 3 de dezembro, iremos operacionalizar a mudança. Essa é a decisão e ela foi nossa, como forma de atender ao pedido dos rodoviários e evitar a greve. O governo entende que uma greve de ônibus neste momento não poderia acontecer e se empenhou, no que tinha autonomia, para evitá-la. Agora, teremos que operacionalizá-la e ver o custo financeiro que ela representará. Porque haverá um custo sim”, afirmou Roberto Campos, coordenador jurídico do Consórcio Grande Recife.