As motos e a mortalidade dos condutores e passageiros no Brasil: uma tragédia que precisa ser combatida
Em 30 anos, a frota de motos cresceu a um ritmo, aproximadamente, 10 vezes mais rápido do que a frota de automóveis, exigindo ações urgentes
Confira o artigo assinado por Cesar Cavalcanti, coordenador Regional Nordeste da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), professor associado (aposentado) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro das Academias Pernambucana e Nacional de Engenharia.
“As cidades, especialmente as maiores, com toda sua complexidade e dinamismo, estão sempre em evolução, respondendo à interação dos múltiplos fatores que constituem a essência de seu metabolismo. Dentre estes, há que se destacar a mobilidade, como elemento fundamental para que se contemplem os objetivos diários dos seus habitantes.
Neste particular, as dificuldades enfrentadas pelo transporte público coletivo (TPC), a quem deveria caber a maior parte dos deslocamentos urbanos, em atendimento ao consagrado objetivo da sustentabilidade, entre outros igualmente importantes, têm ocasionado o afastamento dos seus usuários, que buscam opções mais condizentes com as suas expectativas, tais como menor preço, mais rapidez na viagem, menor tempo de espera e maior confiabilidade.
Nos deparamos, em consequência, com a expansão desmesurada de uma modalidade de transporte, a motocicleta, cuja segurança deixa muito a desejar, quando comparada às outras alternativas existentes.
Os registros oficiais mais recentes do Detran-PE indicam que o crescimento da frota de motocicletas e, consequentemente, sua utilização no ambiente urbano, estão ocorrendo a um ritmo vertiginoso, senão vejamos: na RMR, entre 1993 e 2023, a frota de motos passou de 20.400 para 417.872 unidades, resultando num crescimento percentual de 1.948%, enquanto que a frota de autos de passeio aumentou, no mesmo período, de 266.360 para 791.831 unidades, correspondendo a uma aumento percentual de 197%.
EXPLOSÃO DA FROTA DE MOTOCICLETAS E O PERIGO QUE ISSO REPRESENTA
Ou seja, em 30 anos, a frota de motos cresceu a um ritmo, aproximadamente, 10 vezes mais rápido do que a frota de automóveis particulares. Porém mais preocupante ainda, são os dados referentes ao primeiro emplacamento entre os meses de janeiro e agosto do corrente ano de 2024, em Pernambuco: foram 22.487 automóveis particulares em primeiro emplacamento, enquanto que as motos (incluindo motonetas e ciclomotores) atingiram o valor de 72.142 unidades!
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No cenário nacional, a presença das motos também é expressiva: dados da Senatran para agosto de 2024, indicam que a frota de motos, motonetas e ciclomotores atingiu o montante de 34,4 milhões de unidades, correspondendo a 28% do total da frota nacional e colocando-a como a segunda maior do país, atrás, apenas, da dos automóveis (62,7 milhões).
Quando se examinam os dados referentes à morbimortalidade dos usuários desta classe de veículos, percebe-se a magnitude do problema a ser enfrentado: o Boletim Epidemiológico No. 6, de 27.04.2023, do Ministério da Saúde, assinala que, em 2020, as lesões de trânsito causaram mais de 190 mil internações nos hospitais do SUS.
É flagrante, portanto, a gravidade de uma situação em que os usuários de uma frota que
representa 28% do total, sofrem 61,6% das sequelas do total infligido pelos sinistros de trânsito.
MORTES E INTERNAÇÕES ASSUSTAM
Verificou-se, ainda, que entre 2011 e 2021, a taxa de internações de motociclistas subiu de 3,9 para 6,1 por 10 mil habitantes e que, no mesmo período, os óbitos de motociclistas cresceram de 26,6% para 35,3% do total das mortes no trânsito.
Este Boletim aponta, ainda, para os principais fatores de risco, relacionados às lesões dos usuários de motos: altas acelerações e velocidade, mudança de faixa descuidada ou condução em ziguezague, direção agressiva, não se fazer visível e a formação precária, dentre outros de menor expressão.
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Quanto ao veículo moto, é notória a precariedade da proteção aos seus usuários, pois ele não dispõe dos dispositivos de proteção passiva de que gozam os veículos encarroçados, além de apresentar, com certa frequência, uma manutenção inadequada ao regime de trabalho que lhe é submetido.
Ademais, não se pode esquecer que, por cima dessas deficiências, ainda se impõe a preocupação com o equilíbrio da condução. Também são indicados os fatores de risco que, sem serem da responsabilidade direta dos condutores dos veículos, contribuem para provocar sinistros que, de outra forma, não ocorreriam: o ambiente viário caracterizado, principalmente, pela sinalização, traçado e dispositivos de organização/moderação do tráfego, que devem prezar (mas, nem sempre o fazem...) pelos ditames da correta Engenharia de Tráfego, e os fatores circunstanciais, tais como o clima, as condições do tráfego, a fiscalização deficiente, a legislação leniente e eventuais falhas na capacidade estatal de responsabilizar o infrator.
QUEM ESTÁ PAGANDO A CONTA É O SUS
A questão econômica dos sinistros de trânsito no Brasil, também suscita grande preocupação: o custo ao SUS, das internações devidas aos sinistros de trânsito, valiam R$175,2 milhões em 2011, com os motociclistas contribuindo com o valor de R$ 85,2 milhões deste total, ou seja 48,6%. Em 2021, estes valores passaram, respectivamente, para R$ 282,3 e R$ 167,0 milhões, ensejando uma participação de 59,2% dos motociclistas.
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Considerando os alarmantes dados acima coletados, é preciso pensar numa intervenção governamental baseada num leque de políticas públicas que sejam estrategicamente amplas, profundas e integradas, que nos permita reduzir e, eventualmente, eliminar a mortandade que hoje, afeta tantas vidas em eventos, reconhecidamente, evitáveis.
SEGUNDA DÉCADA DE AÇÃO PELA SEGURANÇA NO TRÂNSITO
Este esforço, responde aos objetivos da segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2021-2030, da ONU e complementa as iniciativas tomadas pelo Governo Federal, relacionadas à década anterior (2011-2020), que objetivaram:
1) Regulamentar a atividade do motociclista profissional (Lei No. 12.009, de 29.07.2009),
2) Vedar o emprego de práticas trabalhistas que estimulem o aumento da velocidade dos motociclistas profissionais (Lei No. 12.436, de 06.07.2011),
3) Considerar como perigosa, a atividade de motociclista profissional, implicando na modificação das características do contrato de trabalho e na sua remuneração (Lei No. 12.997, de 18.06.2014),
4) Implantar o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito – PNATRANS (Lei No. 13.614, de 11.01.2018), revisado em 2021, objetivando sua adaptação às diretrizes propostas pela OMS/ONU para a segunda década (2021-2030) do projeto global de redução de mortes e lesões no trânsito.
Especificamente com relação ao transporte motociclístico, o PNATRANS propõe:
1) Elaboração e execução de programa de fiscalização da velocidade de circulação de motocicletas nos corredores,
2) Elaboração de manual de soluções por tipo de tráfego, voltadas à proteção de motociclistas, 3)atualização dos requisitos de dispositivos e materiais de segurança e sinalização, com foco nos motociclistas,
4) Regulamentação da instalação de defensas metálicas, como dispositivo de proteção ao motociclista,
5) Aprimoramento de itens de segurança em bicicletas, motocicletas e assemelhados,
6) Aprimoramento dos requisitos técnicos de segurança para capacetes de motociclista,
7) Direcionamento da fiscalização para operações focadas no uso do álcool e no descumprimento do tempo de direção dos motoristas profissionais e, genericamente, as cometidas por condutores de motocicletas, motonetas e ciclomotores e,
8) Aprimorar campanhas para identificar segmentos preferenciais a serem abordados, aprofundando a análise sobre seus comportamentos e universos de valores, elencando o modo mais eficaz de comunicar riscos a grupos mais vulneráveis à essas lesões, como os jovens, os de menor escolaridade, profissionais do transporte e, especialmente, motociclistas.
É PRECISO AGIR E URGENTEMENTE
Ao tomar consciência da existência dessas 11 iniciativas, todas elas pertinentes e criteriosamente elaboradas, verifica-se que a falha em reverter os resultados dos sinistros de trânsito, se situa em algum momento posterior à sua concepção e planejamento, ou seja, na etapa da sua aplicação e controle. Ou seja, os gestores públicos e as entidades governamentais responsáveis pela gestão do trânsito, não desempenharam suas funções à altura dos desafios a serem enfrentados e, portanto, são os verdadeiros responsáveis por este lamentável fracasso.
O foco, portanto, na retomada deste esforço de reversão da tenebrosa mortalidade dos motociclistas, ainda em ascensão, reside na rigorosa cobrança social, política e judicial a estas figuras que assumiram, formalmente, o compromisso de gerir o trânsito brasileiro, por um desempenho eficaz, que proporcione os resultados que todos esperamos.