O espaço era um campo de futebol. Mas, naquele momento, funcionava como parque de diversões. Era noite e o local, bastante movimentado. Arthur estava lá. E, em meio ao clima de festa, foi surpreendido e morto com quatro tiros. A morte foi em 26 de novembro de 2020, no bairro do Curado 4, Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife. Homem, com 23 anos, não-branco e morador da periferia, Arthur faz parte do perfil das pessoas que foram mais assassinadas em Pernambuco, em 2020, segundo levantamento do programa Pacto pela Vida, produzido pela Secretaria Estadual de Planejamento (Seplag).
No ano passado, 1.958 vítimas com idades entre 18 e 30 anos foram mortas. Essa faixa etária representa 52% do total dos homicídios. E a cor das vítimas também chama a atenção: só 2% são brancas. "A esmagadora maioria das mortes tem cor e idade. Há um genocídio da população jovem e negra (inclui-se aqui a parda), fruto da desigualdade no Brasil, que não é apenas social. Há um racismo estrutural e institucional, que não é combatido como deveria ser", avalia o promotor de Justiça Roberto Brayner, que atua na área criminal.
A socióloga Edna Jabotá, do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), concorda. "A população jovem sempre foi a mais vulnerável à violência. E, por isso, a necessidade de políticas de prevenção, como a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, incentivo à cultura e criação de espaços com atividades que possam atrair o interesse delas", pontua.
A "radiografia da violência", produzida pela Seplag, apontou as possíveis motivações de cada um dos 3.759 assassinatos no ano passado. Desse total, 64% (2.406) tiveram relação com atividades criminais. "O tráfico de drogas e a disputa de território entre traficantes acarretam muitas dessas mortes", diz o gestor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), delegado Bruno Magalhães. Como exemplo, cita o bairro do Ibura, na Zona Sul do Recife. "Ano passado, houve guerra entre organizações criminosas. E muitos assassinatos."
Os crimes de proximidade, ou seja, aquelas mortes que ocorrem por motivos banais, como briga entre parentes ou vizinhos, por exemplo, também cresceram. Representaram 22% das motivações de homicídios em 2020.
José Cláudio de Paiva Costa, 51 anos, entrou para essas estatísticas. No dia 8 de março, ele bebia com um vizinho e, durante uma aposta, discutiram. A vítima acabou atingida por um tiro no pescoço e morreu. O caso também foi em Jaboatão.
E aí, entra também outro ponto do estudo: 81% dos assassinatos do ano passado foram por arma de fogo. Em 2019, o instrumento foi usado em 79% das mortes violentas. Para Edna Jatobá, os números são próximos e não é possível avaliar se eles já têm relação com a política de incentivo ao armamento, do governo federal desde 2018. "Mas precisamos acompanhar de perto porque 81% é um número muito alto", diz.
Criado em 2007, na gestão Eduardo Campos, o Pacto pela Vida prevê a meta de redução anual de 12% na taxa de homicídios. Mas, em 2020, houve aumento de 8,4% em relação ao ano anterior. A Secretaria de Defesa Social foi procurada para comentar o estudo, mas não indicou um porta-voz. Em nota, disse apenas que o documento é uma "forma de transparência ativa e de colaboração com estudos sobre a violência".
DIA E HORA
A violência não tem dia nem hora para acontecer. Mas, como mostra o levantamento da Seplag, há dias da semana e turnos em que são observados mais registros de homicídios, indicando, segundo especialistas ouvidos pela coluna Ronda JC, a necessidade de políticas públicas em algumas áreas para evitar mais mortes.
Durante todo o ano de 2020, foi no horário da noite (definido entre as 18h e 0h) que mais pessoas foram executadas. Segundo as estatísticas, 1.549. Isso representa 41,2% do total. Para a socióloga Edna Jatobá, esse dado deve orientar as políticas de prevenção primária. "É preciso dividir tarefas. O governo do Estado cobrar das prefeituras ações, como iluminação pública, melhorias nas praças, ações de saúde e assistência em locais de cenas de uso de droga. São ações de prevenção que podem evitar mortes", pontua. O gestor do DHPP, Bruno Magalhães, completa: "Também é preciso mais atenção para as estradas, que devem ser pavimentadas para não dificultar a passagem da polícia".
O domingo foi o dia da semana em que houve maior número de registros. No total,691. O sábado,622. Juntos, os dois dias representam 34,9% das ocorrências. Para Magalhães, um dos fatores relacionados é que, nos fins de semana, "mais pessoas saem de casa e ocorrem mais atritos".
O consumo de bebidas alcoólicas também está interligado. Mais bares abertos, mais confusão. Sem contar o consumo de droga, que cresce nos dias de folga. E a cobrança por dívidas de entorpecentes, em locais ermos e terrenos desabitados, que, muitas vezes, servem como boca de fumo.
"A gente observa que esse aumento das mortes começa já na sexta-feira. Temos possibilidades do que pode estar por trás dos números, mas é preciso que o Estado analise e, a partir deles, crie uma política de controle social", diz Edna.
O gestor do DHPP disse que, desde o começo do ano, houve reforço das polícias nos locais mais violentos. "Estamos atuando justamente nos fins de semana à noite. Na capital, a atuação acontece nas áreas integradas ligadas a bairros como Várzea e Torrões."
Edna lembra que o problema não está só na periferia. E é verdade. Em 5 de setembro de 2020, noite de sábado, um major da Polícia Militar e um policial penal se envolveram numa discussão banal num bar em Boa Viagem, Zona Sul do Recife. Na troca de tiros, três pessoas, que nada tinham a ver com a confusão, acabaram mortas à bala.