Aos 37 anos, o pneumologista Isaac Secundo tem abraçado uma tamanha missão ao longo de toda a epidemia de covid-19. No Real Hospital Português (RHP), ele tem se multiplicado para dedicar a melhor assistência possível aos pacientes. Natural de Juazeiro do Norte (CE), Isaac mora no Recife desde 2009, quando iniciou residência médica. "Não tenho ideia de quantos pacientes infectados ja acompanhei. Lembramos mais daqueles que perdemos. Mas se colocarmos na conta que vemos dez pacientes por dia, é muito doente", diz o pneumologista, nesta entrevista à jornalista Cinthya Leite, a quem ele fala sobre as novas facetas da covid-19, sem deixar de transmitir a mensagem de que a luta, mesmo árdua e exaustiva nesta pandemia, gira em torno de salvar vidas.
JC — Um ano depois do início da pandemia, a gente volta a um cenário igual (ou talvez pior) do que 2020. Como tem sido a sua luta?
ISAAC SECUNDO — O dia a dia tem sido extremamente exaustivo e cansativo. Viemos de um ano muito difícil, em que perdemos bastante pacientes, mais do que esperávamos. Deixamos de fazer as nossas coisas habituais, deixamos de ter um lazer. O que a gente esperava que fosse melhorar virou realmente um cenário bem pior. A dificuldade da rotina também vem especialmente pela carga emocional que a gente vem tendo ao longo de um ano, pelo cansaço fisico decorrente de uma pressão muito grande ao lidar com a doença, que pode ser mortal para alguns. Isso deixa a gente muito sentido e faz com que também impacte o aspecto psicológico. A gente tenta ser positivo, levar esperanca para a população e os pacientes, mas não está fácil. É muito sofrimento.
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JC — Podemos dizer que esta segunda onda de covid tem uma nova cara?
ISAAC SECUNDO — Tem. Na primeira onda, os casos eram mais leves do que agora. Atualmente são quadros mais graves. Um detalhe importante é que estamos vendo casos em que os pacientes têm mais acometimento pulmonar. Se tínhamos isso na primeira onda? Tínhamos. Mas agora se acentuou um pouco mais. E outra coisa também importante é que a gente tem visto uma progressão de doença mais rápida. O paciente logo começa a usar oxigênio. Então, a impressão é que a covid-19 acomete mais o pulmão e que os pacientes estão chegando mais grave, além do fato de que a doença realmente tem uma transmissibilidade maior. Mas uma coisa que também mudou, da primeira onda para cá, é que a gente tem recursos que não usávamos. A fisioterapia, por exemplo, avançou bastante. Temos usado a VNI (sigla para ventilação não invasiva, recurso em que o paciente recebe uma máscara para melhorar os níveis de oxigenação e diminuir o desconforto respiratório) com uma frequência maior. Além disso, surgiu o cateter nasal de alto fluxo, que é um tipo de ventilação de oxigenação também utilizado bastante. Importante frisar ainda que notamos que agora que a covid-19 parece não acometer tanto a função renal, o que era mais comum na primeira onda. Então, temos pontos positivos e negativos. Há mais recursos para tratar, medicações novas. O Rendesivir (antiviral) foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e tem também o Tocilizumabe, que é uma medicação que surgiu para modular a inflamação causada pela covid-19.
JC — Então, mudou o perfil dos pacientes hoje, em comparação com os que adoeceram na 1ª onda...
ISAAC SECUNDO — Sim, são mais jovens. A gente não tem um percentual desse volume, mas notamos (aumento nessa faixa etária). São pessoas de 37, 45, 40 anos, que era algo que, na primeira onda, não se via com tanta frequência como agora. Eles agravam mais rápido e, quando encontramos a droga ideal, conseguimos resolver logo o problema. Eles demandam tratamento mais complexo, em unidade de terapia intensiva (UTI), que demanda um trabalho árduo. Mas também estamos mais preparados, sabemos mais ou menos como a doença vai evoluir. Claro que é uma doença nova, e a gente não sabe tudo, mas temos uma ideia de como a gente vai ver (a progressão) e, dessa forma, antecipamos alguns passos.
JC — Quantos pacientes têm admitido por dia no hospital?
ISAAC SECUNDO — É difícil dar um número. Mas a impressão é que, quando a primeira onda aconteceu, estavamos bem voltamos para a covid. O hospital estava fechado para outras especialidades. Claro que os casos de acidentes de moto e de AVC (acidente vascular cerebral) não deixaram de ser atendidos em momento algum nesta pandemia. Mas neste momento, pacientes com câncer precisam ser operados, e os que infartam, os que têm problemas neurológicos devem ser atendidos. Então, a quantidade de movimento no hosptial tem aumentado porque estamos atendedndo a uma demanda que nao atendíamos na primeira onda. Tudo isso vem aliado a este segundo momento da covid. O movimento da emergência começa a subir de forma importante, seguido do incremento do atendimento, depois internamento e, em seguida, tem o aumento do número de vagas na UTI ocupadas. É como se fosse uma cascata. A gente tem internado mais. No Real Hospital Português (RHP), não houve falta de vaga na ala covid nem na UTI, mas ficamos próximos disso.
JC — Como essa rotina extenuante reflete no seu dia a dia? Como cuida do seu emocional?
ISAAC SECUNDO - É difícil. Acordo cedo, falo com esposa, filhos e venho para o hospital. A gente começa a trabalhar, a ver os casos e a conversar com as famílias sobre a tomada das decisões e o que a gente vai fazer com o paciente. A pressão é muito grande. Temos que tomar decisões rápidas em pouco tempo, pois a doença progride de forma rápida. É necessário ter um preparo emocional grande, por exemplo, para indicar um internamento na UTI e para comunicar um óbito. A gente tem que se recompor porque ainda há os pacientes que precisamos evoluir (acompanhar) e que estão dependendo de esperanças. Então, a rotina mental tem sido muito cruel. Não se ensina isso na faculdade; vamos aprendendo com a experiência. Tento chegar em casa, assistir a uma série, conversar com esposa e filhos. Tento tirar um pouco o foco do hospital. Às vezes, é difícil porque pode acontecer de estarmos acompanhando um paciente mais grave que precisa de uma atenção maior. E isso, às vezes, não nos deixa desligar totalmente. Mas, se tenho um momento de folga, tento aproveitar a minha família ao máximo.
JC — Como é perder um paciente para a covid-19?
ISAAC SECUNDO — Sem dúvidas, é muito difícil. Na maioria das vezes, estamos perdendo um irmão, filho, marido, pai. E aquela dificuldade da família que a gente acompanha transcende a nós, médicos. Quando começamos a acompanhar um paciente covid, conhecemos a família toda. O pai, a esposa, o filho, todos ligam para a gente. Ficamos amigos. Então, é como a gente perdesse uma pessoa da gente. Perdemos amigos, colegas. É duro. Mas nós, médicos da linha de frente, não podemos ter um espaço maior para o luto. Temos que continuar, e isso exige que a gente racionalize para seguir em frente.
JC — Se tivesse que fazer um pedido hoje para a população, qual faria?
ISAAC SECUNDO — A população tem que acreditar na ciência. Quando falamos sobre a necessidade de uso da máscara, de não fazer aglomeracoes, de não fazer festas, é porque aquilo ali pode ser uma bola de neve. Uma pessoa doente vai infectar todo mundo dentro de casa; é o que a gente tem visto. Então, é preciso respeite as pessoas que estão na frente disso, pesquisando, dando o sangue. Quanto mais a gente conseguir acreditar na ciência, mais rápido vamos conseguir sair dessa situação.