O isolamento - figurativo e literal- não é um estado estranho para Fiona Apple. A artista americana optou, há anos, por uma vida reclusa em Venice Beach, na Califórnia, recusando o sistema de estrelato ao qual foi catapultada quando estreou com Tidal (1996), um clássico instantâneo. Seus trabalhos de tornaram cada vez mais espaçados e seguiam uma lógica muito própria, alheia às pressões da indústria. O lançamento de seu quinto disco, Fetch The Bolt Cutters, aprofunda o já fascinante universo poético construído por ela nas últimas duas décadas.
Que Apple tenha decidido lançar Fetch The Bolt Cutters em meio à pandemia do novo coronavírus, a despeito das orientações da sua gravadora, só reforça como seu projeto artístico é corajoso e desafiador. Também revela sua sensibilidade para entender como seu trabalho, apesar de profundamente pessoal, tem muito a falar sobre o momento que o mundo atravessa, não só pelo isolamento social ao qual parte da população está submetida, como também sobre questões relacionadas ao machismo e à saúde mental.
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Gravado inteiramente na casa da artista, o álbum é resultado de um processo longo, que começou em 2012, e passou por diferentes etapas e rotas distintas. Em entrevista ao New Yorker, os colaboradores do projeto lembram que as sessões de improviso promovidas por Fiona Apple eram marcadas pelo uso irrestrito de instrumentos em busca de sons distintos (até a ossada de Janet, cadela da cantora, falecida em 2012, entrou na experimentação).
O resultado é um trabalho com uma base percussiva marcante, por vezes opressiva, mas essencialmente intimista, como um registro da complexidade emocional de alguém sem medo de explorar seus lados mais sombrios. A sagacidade de Fiona Apple para combinar sua técnica como pianista à paixão por jazz, rock e outros estilos musicais é destacada pela crítica desde sua estreia. As formas inventivas como ela subverte sua formação clássica, fugindo do espectro de virtuose, é admirável.
Parece haver nela um interesse constante em não deixar a técnica se sobrepor ao sentimento - o que não implica em um interesse pelo sentimentalismo. As composições da norte-americana são cruas, diretas e cortantes, como fica mais uma vez evidente no novo trabalho.
Em entrevista ao site Vulture, ela explicou que uma das parte mais libertadoras do projeto foi ter relaxado e se permitido abraçar a imperfeição. “Acho que parei de tentar ser uma cantora, na verdade. Eu me divirto com minha voz, mas eu não tento fazer ela soar bonita o tempo todo. Não estou tentando convencer ninguém que eu sou uma cantora. (Minha voz) Acabou se tornando apenas mais um instrumento”, afirmou.
O título do álbum, que em português significa “Pegue o alicate”, faz referência a uma frase dita por Stella Gibson, personagem interpretada por Gillian Anderson na série The Fall, ao encontrar uma porta trancada. Dentro do aposento está o corpo de mais uma vítima de um serial killer cujas vítimas são sempre mulheres. A temática da misoginia e das opressões da sociedade patriarcal permeiam o trabalho, seja no campo afetivo, das relações, ou quando ela trata de questões mais amplas.
Em faixas como Under The Table, ela confronta o machismo estrutural que continua vitimando mulheres. “Me chute por baixo da mesa/Eu não vou me calar”, repete com uma revigorante autoconfiança. For Her é uma composição forte sobre a exploração física e emocional das mulheres e fala abertamente do trauma do estupro. Apple, no começo dos anos 2000, revelou ter sido sido vítima de abuso sexual na adolescência.
A abertura emocional de Fiona em canções como I Want You To Love Me, Cosmonauts e Drumset, soa ainda mais necessária em um momento em que pouco se sabe sobre o futuro e todos têm que encarar, os fantasmas e os silêncios que ecoam tão alto dentro de casa e de cada um. Como uma eremita que passa sua mensagem, sem necessariamente deixar seu isolamento, Fiona Apple nos ensina que há muitas lições a se aprender do isolamento - e que sinceridade e fragilidade são também reflexo de força.