'Lovecraft Country' aborda o terror do racismo nos EUA

Série da HBO tem produção do aclamado Jordan Peele e de J.J. Abrams
Márcio Bastos
Publicado em 04/09/2020 às 11:02
VIAGEM Protagonistas se deparam com facetas do horror. A pior delas é o racismo ao modo norte-americano Foto: HBO/DIVULGAÇÃO


H. P. Lovecraft (1809-1937) é considerado um dos autores mais importantes da literatura de terror e ficção científica da primeira metade do século 20. Seus universos permeado por monstros e criaturas fantásticas influenciaram várias gerações. Esses personagens ameaçadores, bestiais, eram também reflexos de seu racismo, elemento que é tema do livro Território Lovecraft, de Matt Ruff, lançado no Brasil pela Intrínseca. Criada por Misha Green e com produção de Jordan Peele (Corra e Nós) e J.J. Abrams (Lost), a obra foi adaptada para a televisão e a série atualmente é exibida aos aos domingos, na HBO, às 22h.

A trama de Lovecraft Country é ambientada na década de 1950, quando as leis de segregação racial ainda estavam em vigor nos Estados Unidos, o militar Atticus Freeman (Jonathan Majors) volta para casa, em Chicago, para procurar seu pai, Montrose (Michael K. Williams), que desapareceu. Antes, porém, o enviou uma carta misteriosa na qual fala que o filho precisa buscar seu legado familiar na cidade de Ardham (o que abrirá espaço para uma trama complexa envolvendo ancestralidade, magia e poder político).

Os dois não têm uma boa relação e Tic, como o jovem é conhecido pela família e os amigos, tem como referencial paterno o tio, George (Courtney B. Vance), responsável por escrever edições de um guia de viagem para negros, apontando os lugares seguros para visitar, comer, se hospedar etc. Eles saem juntos na missão de encontrar Montrose, levando de carona Letitia (Jurnee Smollett), fotógrafa envolvida nos movimentos de luta pelos direitos civis dos negros.

Na viagem, o trio vai se deparar com o terror em suas várias facetas, seja no racismo da população branca ou nas criaturas sobrenaturais que encontrarão no caminho. A atmosfera de perigo vivida pelos personagens é muito bem trabalhada pelo roteiro e a direção e ajuda a explicitar o terror experienciado pelos negros em países racistas como os Estados Unidos (paralelos com o Brasil são muito pertinentes).

Antes de chegar a mostrar os monstros, a produção mostra várias situações de opressão provocadas pela segregação racial no cotidiano, do abuso da força policial aos olhares odiosos de famílias brancas que, aos domingos, vão à igreja e afirmam seguir os valores cristãos. Em uma delas, Atticus viaja de ônibus, nos fundos, em uma área reservada para negros. Quando o automóvel quebra, ele e outra passageira negra precisam fazer o resto da viagem a pé, enquanto os brancos são colocados em um outro transporte.

Em outra, o trio entra inadvertidamente em um restaurante para almoçar, o que provoca uma das situações mais tensas do primeiro episódio. Ou ainda quando Letitia resolve comprar uma casa em um bairro no qual negros eram proibidos de viver.

Essas questões são trabalhadas também no campo do discurso entre os personagens, inclusive no que diz respeito à fascinação de Atticus e seu tio por literatura fantástica, cujos autores mais celebrados à época eram brancos, a exemplo de Lovecraft, citado desde o começo. Essas discussões aparecem também em referências a fatos históricos e obras de arte. Os protagonistas são conscientes e atentos ao que acontece em seu entorno, questionando as entranhadas da sociedade.

A série questiona a ideia do sonho americano e mostra que ele é uma construção do imaginário branco, constantemente negado à população negra. As contradições do "país da liberdade" são trazidas constantemente, como no fato do protagonista ter lutado na Coréia em defesa de uma nação que, no entanto, não lhe garante plenos direitos e assassina seu povo em sua própria terra. 

As permanências dessas raízes profundas do racismo na sociedade de hoje tornam Lovecraft Country ainda mais impactante. A série se alinha a uma vertente do terror que tem florescido nos Estados Unidos, especialmente após o sucessos de Corra e Nós, de Jordan Peele. São trabalhos que utilizam as convenções do gênero para tratar de questões profundas da sociedade estadunidense a partir do protagonismo das experiências dos negros.

Nos três episódios já exibidos (o quarto é transmitido neste domingo) foram trabalhadas várias facetas do horror, como monstros, sociedades secretas, magia e casas assombradas, mas as partes mais assustadoras continuam sendo as que envolvem o preconceito racial. Ao todo, a temporada terá dez capítulos e, apesar de terem ligações entre si, até agora cada episódio funcionou também como um estudo dos subgêneros do terror.

A série parece querer deixar isso claro ao trabalhar os efeitos especiais das criaturas sobrenaturais de maneira quase caricata, como que para explicitar que os monstros mais perigosos, quase sempre, estão disfarçados sob o discurso de defesa da moral e bons costumes.

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