Estreando nesta terça-feira, o documentário AmarElo: É Tudo pra Ontem, do rapper paulista Emicida leva o nome de seu último disco, traz imagens dos bastidores e do apoteótico show de lançamento realizado no Theatro Municipal de São Paulo. Mas seu grande abraço é na história e nos caminhos de movimentações culturais que possibilitaram aquela noite, a produção daquele disco e a própria trajetória de Emicida enquanto um artista preto. E a palavra certa é abraço porque a força deste braço audiovisual do AmarElo é a força dos encontros que aconteceram antes de nós, movidos pela intelectualidade, pela poesia e pela luta.
Em 1h30, Emicida, em uma parceria de direção com Fred Ouro Preto, traça um poderoso perfil da cultura brasileira a partir de uma tônica de resgate e admiração por movimentações e pessoas fundamentais para a construção de um Brasil enquanto uma identidade cultural e política. Muitas delas esquecidas pela história oficial ou com reconhecimento aquém de suas ações e vivências.
Então aqui cabe uma investigação que não só as resgatem, mas que estabeleça os elos que as tornam potentes, em especial as conexões da cultura afrodiaspórica no Brasil, passando pelo samba, modernismo, Movimento Negro Unificado, Teatro Experimental do Negro, Lelia Gonzalez, Ruth de Souza, Candeia, Leci Brandão e outros em uma pungente rede de biografias que se fortalecem a partir da coletividade e compartilham raízes.
“No processo de elaboração do AmarElo, a gente perguntava para todo mundo ‘o que é a coisa mais importante?’. Pergunta difícil, mas concluímos que a coisa mais importante é a relação, o encontro. A vida só faz sentido quando a gente se encontra. Por isso que a gente coloca essa história de pé, falando sobre artistas se encontrando, o povo se encontrando no Theatro Municipal, essa história encontrando os espectadores. Ele é o superpoder do Brasil e a gente perde muito quando não consegue fazer o encontro ser reverenciado, ele precisa ocupar esse lugar”, elabora Emicida, em entrevista dada em uma coletiva de imprensa por videoconferência.
Uma história que é contada não deixando o projeto artístico, o AmarElo disco e o show, como um respiro musical, mas como parte viva e bem documentada dessa narrativa proposta. E mais esse elo é criado com um apuro cinematográfico excepcional, que dá conta de em 1h30 de ir do período escravocrata do país ao coronavírus, sob a condução clássica da linguagem do documentário, com uma narração acompanhada de imagens de arquivo, animações, bastidores e o próprio show, mas com uma força lúdica e poética que o deixa longe de ser um projeto engessado. Em sua criação musical, Emicida já demonstrou e falou muito sobre pensar cinematograficamente. Agora parece que ele fez o caminho oposto, pensando musicalmente o cinema e entregando um documentário que não parece ter ritmo, mas flow.
E o momento é visto por ele como um dos mais oportunos possíveis para a criação desse projeto. “Se nos momentos em que a gente está em uma situação estável, é bonito que a gente tenha esperança, no momento como esse que vivemos, é obrigatório ter. É dela que vai surgir uma sugestão de caminho que coloca a gente em um lugar melhor. Acho que a gente abriu um espaço para que a gente sonhe, no documentário, eu tento mostrar que somos um país de pessoas que sonharam com um mundo melhor e construíram resultados práticos a partir desses sonhos”, explica.
Agora essa história marca presença no catálogo de uma empresa global, gigante do streaming. Porque o AmarElo também parte desse lugar de reivindicação de espaços, do jovem trapper paulista Jé Santiago que entrou pela primeira vez no Theatro Municipal, assim como vários outros da população periférica da cidade, ao espaço na história da sociologia e do pensamento feminista que cabe à Gonzalez ou na dramaturgia à Ruth de Souza.
“Se essas figuras tivessem tido a visibilidade que elas merecem, se elas participassem da história oficial desse país, nossa concepção a respeito do que é esse país provavelmente seria completamente diferente. (...) Às vezes as pessoas acreditam que um lugar como o Theatro Municipal não tem o direito de existir porque é um lugar que representa a exclusão. Mas não, é o extremo oposto, eu acho que ele é tão grandioso, tão bonito e tão digno de reverência que todas as pessoas têm que ter ideia disso e para ter ideia disso, elas precisam se relacionar com o teatro”, afirma.
E por mais que dê conta de um grande universo da cultura negra e brasileira, AmarElo também é um grande documento para a memória do hip-hop brasileiro, em especial a memória audiovisual. Condições consideradas mais democráticas por Emicida para produção são possibilitador disso, abarcando desde os videoclipes até o documentário, mas que ainda assim, há uma lacuna muito grande nessa memória que vai sendo preenchida gradualmente.
"De alguma forma, essa lacuna vai sendo preenchida, mas acho que esse é nosso primeiro documentário. Pela primeira vez, conseguimos organizar histórias dentro de um roteiro, elaborar uma super pesquisa para embasar a produção, passar pelo making of, o show de lançamento e ainda assim contar uma história que é muito mais ampla que nós. Não tem como eu não me colocar nesse lugar e não contar uma história que passe por tantos personagens. Então esse nosso primeiro audiovisual é uma forma da gente dizer que a conquista é coletiva. É uma forma da gente sempre avançar juntos e torço muito para que outros irmãos e irmãs consigam produzir e me predisponho a auxiliar essas pessoas a fazer isso acontecer", conclui Emicida.