A música gospel agora é um Patrimônio Cultural Imaterial do Recife, após a sanção do prefeito João Campos publicada no Diário Oficial no último sábado (8). O projeto de lei 363/2021 foi apresentado pelo vereador Pastor Júnior Tércio (PODE), que integra a bancada evangélica da Câmara Municipal, e aprovado em segundo turno pelo legislativo. O pedido ocorreu um pouco depois desse mesmo título ter sido dado ao brega, com proposta do vereador Marco Aurélio Filho (PTRB).
Mas afinal, algo realmente muda com a sanção dessas leis? Esses ritmos serão mais contemplados pelo poder público municipal, por exemplo? Os títulos seriam apenas simbólicos? O JC conversou com especialistas para entender os desdobramentos dessas recentes aprovações.
Em primeiro lugar, é importante entender mais o que é o patrimônio cultural imaterial, que entrou em discussão no poder público com a atuação da Unesco. A instituição define esse patrimônio de forma abrangente: são práticas, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades e os grupos sociais reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.
No Brasil, existem três instâncias que podem reconhecer os patrimônios culturais: o federal, pela Iphan, o estadual, pela Fundarpe (no caso de Pernambuco), e o municipal, reconhecido pelas gestões das cidades. Recentemente, o Iphan reconheceu o forró e o repetente como patrimônios.
"De um modo geral, falar sobre política pública para a cultura é uma conversa muito recente. A Unesco foi quem puxou a primeira reunião internacional para falar sobre patrimônio, então existem interpretações confusas por ser algo novo", diz Bruno Nogueira, professor do departamento de comunicação da UFPE e pesquisador da música e políticas públicas de cultura.
"A Unesco fala que o estado precisa cuidar da cultura do povo, existindo a preservação do patrimônio material, que é o arquitetônico, e o imaterial, que nos ajudar a entender a ideia de cultura em uma dimensão mais antropológica. Quando dizemos que o frevo é um patrimônio, por exemplo, não estamos falando de ritmo, melodia, harmonia e acorde, e sim da manifestação social que existe em torno do frevo."
Trazendo a discussão para os recentes reconhecimentos no contexto municipal do Recife, Bruno Nogueira diz que a Prefeitura do Recife precisaria, na teoria, encontrar formas de preservar essas manifestações.
"Na primeira ponta, a gestão poderia, por exemplo, reunir registros de fotografias, vídeos, entrevistas, sempre garantindo que o acesso a esse conteúdo seja constante. A segunda ponta é a da programação. Se uma coisa é considerada patrimônio para a cidade, a política pública precisa contemplar aquilo dali. A Prefeitura do Recife tem uma série de equipamentos culturais, como a Torre Malakoff. Então esse espaço, por exemplo, teria de contemplar o brega e agora o que estão chamando de música gospel."
Contudo, também é possível que essa preservação não ocorra. Nogueira ressalta que uma política pública só é pública se tiver participação do povo. "A prerrogativa está dada, cabe ao povo se articular, se manifestar em torno disso. Existe um bom exemplo é o da Sociedade dos Forrozeiros Pé-de-serra e Ai!, uma articulação que pediu uma assento nos debates sobre políticas públicas para propor direcionamentos."
O produtor cultural e doutor em antropologia Rafael Moura, por sua vez, comenta que a política de patrimônio municipal do Recife ainda é muito iniciante, até "incipiente", o que tornaria o reconhecimento "muito mais simbólico do que prático". "A questão é que isso pode se desdobrar em outras questões, como a música gospel poder pleitear espaço em programações e nas leis de incentivo, como no edital Sistema de Incentivo à Cultura do Recife (SIC)."
Apesar das leis do brega e da música gospel terem sido aprovadas numa mesma época, os significados das aprovações são bastante diferentes. O brega surgiu nacionalmente, ancorado na jovem guarda, e criou uma cena bastante específica em Pernambuco ao longo das décadas - assim como ocorreu no Pará.
Rafael Moura comenta que, apesar dessa legitimidade cultural e social, o brega precisou pleitear por espaço após ser retirado das programações do poder público. "Essa cena passa a se organizar e ganhar espaço a partir da Lei do Brega, aprovada na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, em 2017. O ritmo passou a ser visto como uma expressão cultural relevante para o estado e para a capital, embora ainda não tenha ganho o devido espaço nas leis de incentivo."
Sobre a música gospel, no entanto, Bruno Nogueira comenta que não existe uma delimitação muito evidente do que é gospel ou não. Nos Estados Unidos, por exemplo, o gospel é um estilo musical bastante definido. "Aqui, o que está sendo chamado de gospel é um movimento ligado a igrejas específicas. Se dissermos que o gospel é uma música de louvor, isso deveria ir além dessas igrejas", comenta.
"Assim, essa música está menos atrelada a manifestações do povo e sim de igrejas, entrando em conflito com a questão do estado laico. Tudo isso vai resultar no fato de que vamos precisar abranger a nossa política pública para que ela contemple as atividades dessas igrejas", conclui Nogueira.
Rafael Moura endossa que, nos atuais moldes, o reconhecimento de patrimônio cultural imaterial acaba tendo um tom político-partidário. "Os vereadores propõem e o prefeito sanciona. No caso do Iphan, existe uma pesquisa sobre a manifestação e a criação de um inventário. No caso municipal, não é debatido com a sociedade, não tem pesquisa. É uma coisa política para conseguir apoio eleitoral-partidário. Isso desvaloriza um pouco o próprio título de patrimônio imaterial", finaliza.