A figura reluzente do caboclo de lança, com seu chapéu ornado de fitas multicoloridas e uma rosa na boca, tão usada em conteúdos de propaganda e informação sobre a cultura de Pernambuco, é um contraste com a escuridão que emerge no horizonte dos fazedores da cultura popular. No segundo ano sem a realização do Carnaval, lideranças de manifestações que dão identidade à festa alertam sobre o cenário de terra arrasada entre agremiações.
O impacto é forte porque as contratações por parte do Governo do Estado e das gestões municipais são as principais fontes de verbas dessas expressões culturais. De acordo com a pesquisadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo, essa relação com o poder público vem se consolidando no Estado desde os anos 1930 com a instalação oficial da Federação Carnavalesca Pernambucana.
"Referimo-nos, por exemplo, aos clubes, troças e blocos de frevo, aos caboclinhos, maracatus, bois e ursos, reconhecidas, cada uma a seu tempo, como expressões representativas da cultura e da identidade pernambucanas", diz a pesquisadora. A partir do ano 2000, com a consolidação do modelo do Carnaval Multicultural no Recife, ainda vigente na atualidade, essa participação remunerada das manifestações foi relativamente ampliada.
Desde 2021, primeiro ano sem Carnaval, auxílios emergenciais foram pagos a artistas, grupos e agremiações. Neste ano, o Governo do Estado e Prefeitura do Recife ampliaram a verba destinada, abrindo também novas categorias válidas para receber. No âmbito estadual, são R$ 6,362 milhões para 750 artistas, grupos e agremiações que trabalharam nos anos de 2018, 2019 e 2020, destinando valores de 80% dos cachês, com teto de R$ 30 mil.
Já no Recife, são R$ 10 milhões em verbas, pagando 100% dos cachês, com teto de R$ 60 mil. Na nova categoria de beneficiários individuais, como técnicos e artesãos, será pago um valor fixo de R$ 1,2 mil. Na cidade de Olinda, os valores são menores: até 35% do cachê de 2020, com limite máximo de R$ 10 mil. Os editais já foram publicados nos diários oficiais.
Verbas são insuficientes para agremiações
Apesar dos esforços do poder público, lideranças de associações afirmam que a questão do pagamento é bem mais complexa, principalmente ao lidar com grupos numerosos, a exemplo do afoxé e do maracatu. No Carnaval, muitos grupos realizam várias apresentações que, no final das contas, geram uma receita relevante. Apenas um percentual do cachê, no entanto, seria irrisório para contemplar essas agremiações.
"No primeiro ano sem Carnaval, percebemos que a história do auxílio acabou sendo um contrato com linhas miúdas. No Recife, algumas agremiações receberam apenas 50% da subvenção. Existem afoxés que receberam subvenção de R$ 1,6 mil reais. Teve instituição, inclusive, que pagou apenas R$ 680 a um grupo", diz Fabiano Santos, presidente fundador da União dos Afoxés de Pernambuco e do Afoxé Alafin Oyó.
"Então, como é que o brincante vê a situação? O gestor divulga amplamente que existe um teto de R$ 30 mil, e eles pensam que a sua instituição receberá algo próximo desse valor, sendo dividido para todo mundo. Porém, de fato, sabemos que o valor é muito menor, não chegando nem a 10% disso", continua.
Apesar das mudanças por parte do Governo do Estado e da Prefeitura do Recife, Fabiano Santos ressalta que os cachês das agremiações não recebem atualização há quase 10 anos. Durante a pandemia, a inflação brasileira disparou, o que torna os percentuais ainda menos valorosos.
"Acredito que as gestões poderiam, mais pra frente, realizar alguma mostra de cultura popular, contratando esses grupos mais frágeis para realização de apresentações. Atualizando os cachês, inclusive. Uma das coisas que mais magoa é que, enquanto podíamos fazer o Carnaval, e os lucros do Estado e das prefeituras eram reais, nós éramos contratados para fazer a festa. Agora, com esses dois anos de impedimentos e de tudo o que nos assola, estamos sendo descartados dentro do processo", desabafa o presidente.
A insatisfação com o auxílio também é ressaltada por Fábio Sotero, atual presidente da Associação dos Maracatus Nação de Pernambuco (AMANPE) e da Nação Africana, de Jaboatão dos Guararapes. "Como pode se dar um auxílio de R$ 1 mil para uma agremiação com mais de 150 pessoas? E os impostos que os dirigentes têm? Foi uma situação muito constrangedora o auxílio de 2020. Além dos integrantes das nações, temos as pessoas envolvidas na confecção de fantasias, instrumentos. Essas pessoas sobrevivem da arte que fazem", diz.
"Acho que também existe um certo preconceito. Até hoje o Governo do Estado e a Prefeitura lidam com as agremiações como se não fossem artistas. Como é que se paga um cachê de R$ 30 mil para um cantor, que leva no máximo 15 pessoas numa banda, além dos técnicos, roadies e tudo mais, enquanto uma agremiação, que movimenta uma comunidade, que dá comida e abrigo, só ganha 60% de um cachê?", questiona. "Na Noite dos Tambores Silenciosos, por exemplo, cada nação ganha R$ 5 mil desde 2012. Somando o valor dado às 27 nações, dá uma atração do Marco Zero no Recife".
Desestímulo gera enfraquecimento das manifestações
O presidente da AMANPE compartilha a preocupação com o enfraquecimento da manifestação, visto que muitas lideranças não estão comparecendo às reuniões. "Só vamos saber realmente o impacto nesse sentido quando nos reunirmos novamente. Algumas pessoas falam que essas lideranças foram procurar trabalhos formais e estão optando por não quererem mais fazer maracatu", diz. "O maracatu é um patrimônio imaterial desde 2014 pelo Iphan, mas ainda não temos plano de salvaguarda. Já sentamos várias vezes para discutir isso. Não conseguimos um espaço para ter centro de referência."
No caso do frevo, existe uma especificidade em relação às orquestras, já que muitas não são contratadas pelos governos, e sim por blocos e eventos privados. A orquestra do Maestro Oséas, uma das mais famosas do Estado, não recebeu nenhum auxílio governamental. Em 2020, o grupo não conseguiu se apresentar pela Prefeitura de Olinda porque o horário oferecido conflitava com as saídas dos blocos de frevo tradicionais da cidade, como Boi da Macuca e Elefante. Isso criou problemas para conseguir o auxílio do município.
"Nesse ano eu iria tocar em algumas festas privadas de blocos, mas todas 'morgaram' com o novo decreto. Tinham festas da Trinca de Azes, da Macuca, do Elefante, do John Travolta… Eu tô vivendo com apoio da família. Na pandemia ganhei 3 mil em cada ano, pela Aldir Blanc. Não ganhei nada do governo porque a minha casa está no nome da minha filha e ela recebe Bolsa Família. Sinto falta do Carnaval, do bloco, do povo, da turma brincando comigo. Sinto muita falta, mas primeiramente prezo pela minha saúde", diz Óseas Leão de Souza.
Junior Afro é membro do Comitê Gestor de Salvaguarda do Frevo, tipo de instituição criada para manifestações que são consideradas patrimônios. Ele opina que, se houvesse uma política estrutura da preservação desses patrimônios imateriais, a situação de vulnerabilidade poderia ser menor na atualidade.
"Não podemos observar os brincantes, as orquestras, como coisas que se processam apenas no Carnaval. As expressões estão em vulnerabilidade pela falta de uma política estruturada para esse patrimônio. No Recife, por exemplo, não existe uma política de preservação concreta do frevo. O que existe são iniciativas, como o Paço do Frevo, mas o frevo se processa no cotidiano como uma manifestação cultural", diz Junior.
"Obviamente, a pandemia prejudicou, porque houve a necessidade de parar, mas a comunidade já vivia com problemas. Então, se houvesse uma política estruturada de formação, de acompanhamento, inclusive nas sedes das agremiações, não estaríamos com tantos problemas", continua.
"A comunidade do frevo reconhece a importância dos auxílios, dos esforços de setores da sociedade, sobretudo para aprovar a Lei Aldir Blanc. O que questionamentos é essa manifestação que é colocada à iminência do desaparecimento. A manifestação tem problemas de sobrevivência e corre o risco de desaparecer. O governo não pode esperar a calamidade para cuidar de uma expressão cultural, precisamos de políticas permanentes."
Papel do produtor tem sido pouco lembrado
Jadion Helena Santos é produtora, articuladora cultural e mulher negra - como a mesma ressalta -, sendo responsável pela Cria Produções Artísticas e de Turismo. Ela aponta para um aspecto menos lembrado nas discussões sobre o tema: a situação das produtoras que mediam os grupos da cultura popular com o poder público.
"A ida de um grupo popular para uma apresentação envolve dinheiro para ônibus, compra do figurino novo, entre os detalhes para colocá-lo na rua. O produtor tem esse papel importante para contribuir. Muitas vezes, a Prefeitura do Recife contrata a empresa que representa esse artista. O diferencial é que não somos uma pessoa, somos uma empresa, e um salário mínimo (como será dado no auxílio individual da PCR) não paga nem um imposto municipal. Ainda temos impostos estaduais, federais, um contador, internet, energia", diz Jadion.
"Os auxílios não pensaram nos produtores e existe um risco das produtoras culturais fecharem as portas. Para os grupos, garanto que esses auxílios são para as pessoas comerem ou pagarem dívidas. O valor não dá para comprar tecido e fazer um figurino, por exemplo. Tudo isso tem um custo muito alto. Não tem como estruturar um grupo para ir para a rua sem o Carnaval", finaliza.