Em sua carreira, o pianista recifense Amaro Freitas tem levado uma perspectiva decolonial para o jazz contemporâneo. E tem feito isso ao pé da letra nos títulos de seus discos: "Rassif" (2018) é um termo de origem árabe para "mar que arrebenta", enquanto "Sankofa" (2021) vem dos povos de língua acã da África Ocidental.
O seu quarto álbum, "Y'Y" (pronuncia-se IêIê), dá continuidade a essa trajetória mergulhando em um novo território que muito tem a ver com a visão não-colonial da música, da cultura e da própria ideia de civilização: a Amazônia.
O disco está sendo lançado pelo selo americano Psychic Hotline, marcando a internacionalização que Freitas vem firmando desde o lançamento de "Sangue Negro" (2016), com álbuns que arrancaram elogios de publicações como "Downbeat".
Viagem amazônica
"Y'Y" é resultado de uma viagem realizada por Amaro Freitas para Manaus, em 2020. "Essa vivência me trouxe um olhar sobre um Brasil que todo o Brasil deveria conhecer", diz o músico, ao JC.
"A gente assiste sobre a Amazônia, vemos o rio e a vastidão da floresta, mas nada disso é comparado a estar lá e vivenciar um território que está conectado com a Colômbia, com a Venezuela, com rostos que estão muito conectados com a América Latina. É uma população muito mais indígena do que negra ou branca. É, de fato, uma outra lógica de Brasil", diz.
Amaro conheceu essa vasta diversidade cultural e biológica ao mesmo tempo em que também se aprofundava no processo de "piano preparado", no qual peças são postas entre as cordas do piano (ou até mesmo nos martelos ou abafadores) para se produzir efeitos sonoros.
"Esse processo foi desenvolvido por John Cage, que colocava objetos metálicos, como parafusos, entre as cordas e martelos do piano. No meu processo, usei objetos como pregador de roupa, sementes amazônicas, jogo de dominó. Esses elementos geraram sons incríveis, que são os sons que permeiam o disco", diz Freitas.
Encantamentos
Essa junção do piano preparado com os diálogos com povos amazônicos fizeram o músico chegar na conclusão que seria interessante falar sobre "encatamento", sensação relacionada às entidades espirituais e ao poder ancestral nas matas.
Faixas como "Mapinguari (Encantado da Mata)" e "Uiara (Encantada da Água) – Vida e Cura" contam a energia de lendas poderosas, incluindo a história do Mapinguari, um gigante faminto e peludo com um olho e uma boca enorme no umbigo, que vagueia pela floresta em busca de alimento.
Já em "Uiara", Amaro utiliza um EBow (arco eletrônico mais utilizado em guitarras elétricas) nas cordas do piano para gerar ruídos como o do boto rosa, e fita adesiva, para distorcer o som do piano, que simulam o som dos sintetizadores.
São sonoridades até então inexploradas nos discos anteriores, demarcando a reinvenção do músico. "É uma música que traz o calor tropical da região onde moramos, traz uma dança, mas necessita que o ouvinte esteja atento e conectado com ela. Não é uma música para entretenimento, literalmente, mas sim para se conectar e entender a grande conexão que temos com a natureza e com a nossa ancestralidade", diz.
"Eu não queria que soasse como uma apropriação, pois não estou nortista. Sou nordestino. Para mim, era muito importante chegar na comunidade na intenção de criar um diálogo, de ter uma troca entre povos. Por isso, coloquei nomes como 'Uaiara', Mapinguari', 'Y'Y'. São coisas importantes que reforçam as tradições brasileiras do nosso ditado".
Na sua segunda parte, "Y'Y'" ainda conta com colaborações estrangeiras de Shabaka Hutchings (flautista inglês), Jeff Parker (guitarrista americano) e Brandee Younger (harpista americana). A faixa final reúne Shabaka Hutchings, Hamid Drake (baterista americano) e Aniel Someillan (baixo cubano). Todas essas colaborações reforçam a sua ligação com a comunidade global de vanguarda no jazz.
Naná Vasconcelos
Na faixa "Viva Naná", o músico faz uma homenagem à Naná Vasconcelos - Amaro tocou na abertura do Carnaval do Recife de 2024, também homenageando o percussionista. "Infelizmente, não o conheci pessoalmente, pois na época do auge dele, eu estava na igreja evangélica. De certa forma, seria muito difícil me conectar com a música dele nesse contexto", relembra.
"No processo de estudo para os discos 'Sangue Negro', 'Rassif' e 'Sankofa', eu fui me envolvendo que a obra de Naná . Entendi que tinha uma conexão com o trabalho dele. Em alguns momentos, eu pedi para Naná entrar no palco comigo."
Fazendo eco a pedidos de Patrícia Vasconcelos, viúva de Naná, o músico defende a criação de algum equipamento cultural que garanta a manutenção do legado do percussionista. "Não temos uma preocupação com o tipo de música que Naná fez", opina.
"Ele foi premiado como melhor percussionista do mundo pela Downbeat por oito vezes, ganhou o Grammy oito vezes. Ele provou que é possível ir muito além das fronteiras do nosso Estado e do País, tornando-se o melhor do mundo em algo. A partir disso, podemos criar um Instituto Naná Vasconcelos, para que outras crianças possam conhecê-lo como referência. A partir daí, quem sabe, conseguimos fazer a sua obra chegar em mais pessoas."
Amaro, inclusive, se sente na responsabilidade de dar continuidade às inquietações de artistas como Naná. "Me sinto como uma continuidade, com uma responsabilidade muito grande. Ele foi um homem que provou essa conexão do Norte e Nordeste com o seu berimbau, da sua forma."
Democratizando o jazz experimental
Em sua trajetória, Amaro Freitas também tem feito diversos movimentos em busca de uma certa democratização da música instrumental e do jazz experimental. "A gente tem duas opções: reclamar ou ir atrás", diz.
"Fiz parcerias com cineastas, com Milton Nascimento e Criolo, com Sandy, Manu Gavassi, Zé Manoel e Hamilton de Holanda. Dessa forma, eu consigo falar sobre piano, tocar piano, inclusive com outras técnicas musicais, e levar adiante esse virtuosismo de alguma forma", conta.
"Quando toco com 600 batuqueiros ou com a Sandy, estou criando novas conexões de fazer música com o jazz improvisado. Para mim, isso é democratizar, criar pontes. É sobre ter músicas para todos os gostos e entender a música como um lugar de cura, de conexão, uma liga de celebração - não só daquilo o que você gosta. Quando a gente vai ganhando determinadas projeções, precisamos criar uma consciência mais coletiva."
'O Brasil não consegue identificar o seu próprio ouro'
Apesar de reconhecer as importâncias desses diálogos nacionais e internacionais, Amaro Freitas não deixa de levantar uma reflexão sobre a valorização da música brasileira no próprio território nacional.
"Deveríamos ter um posicionamento para repensar sobre o nosso 'ouro'. Muitas vezes não conseguimos identificar o nosso próprio ouro. O mundo está de olho e fazendo colaborações que de alguma forma beneficiam o Brasil, mas acabam levando o nosso ouro e estamos sem entender nada."
"O mundo está nos dando pedra e levando o ouro. Quando Naná Vasconcelos recebeu reconhecimento nos EUA e gravou discos com vários americanos, isso foi bom para os americanos. É bom para eles ter um Tom Jobim, um Naná. Eles acabam sendo salvos e oxigenados pela música do mundo que chega lá. Mas, o que estamos fazendo para reconhecer os nossos próprios talentos, os nossos próprios tesouros? O que estamos fazendo para termos a capacidade de entender isso?".