A Mariah Carey, uma das mais bem sucedidas estrelas da história da música pop, sempre foi vista como personagem de um conto de fadas moderno. Uma Cinderela contemporânea. A menina pobre, que sonhava em ser cantora, vai a uma festa de uma grande gravadora, conhece um dos mais poderosos chefões da indústria fonográfica e acaba casando-se com ele, que a tornou em uma pop star, cujo álbum de estreia vendeu nove milhões de cópias, só nos EUA.
Foi mais ou menos assim, mas não exatamente, é o que revela a biografia que Mariah Carey lançou em setembro, com a jornalista, produtora e ativista Michaela Angela Davis, O Significado de Mariah Carey (The Meaning of Mariah Carey, ainda sem tradução no Brasil). Realmente, ela foi a uma festa em que se encontravam muitos astros da música americana, e praticamente todos executivos de grandes gravadoras. A amiga cantora que a levou assegurou-se que Mariah estivesse com a fita demo na bolsa.
Mariah nessa época vivia de bicos em estúdios, fazendo backing vocals, e aproveitou para registrar em cassete músicas de sua autoria. Brenda, a amiga, era cantora, embora sem ter feito sucesso, conhecia gente de gravadora. Pretendia que Mariah Carey entregasse a fita a Gerald Greenberg, que fundara um selo com Tommy Motola, presidente da Columbia/Sony Music. Mariah foi apresentada ao produtor, que conversava com Motola. Quando ela estendeu a demo para Greenberg, Tommy Motola antecipou-se, pegou a fita, e foi embora. Mariah Carey conta que ficou indignada, porque não tinha uma cópia do K-7, e achava que ele nem ia escutar. Aliás, nem sabia quem era o cara.
A amiga esclareceu de quem se tratava. Para situá-la melhor a respeito de Tommy Motola, Brenda lembrou a amiga um hit da era disco, Cherchez la Femme, de Dr. Buzzard's Original Savannah Band, em que o presidente da gravadora é citado logo na abertura (a música é sobre ele); 'Tommy Motola vive na estrada/há dois meses ele perdeu sua amada'. Mariah Carey surpreendeu-se, cantava a música quando era garota, mas mesmo assim lamentava ter perdido a fita.
Tommy Motola colocou a demo para tocar assim que entrou na limusine. Mal escutou a primeira canção, pediu ao motorista que voltasse para a festa. A Cinderela já havia ido embora para o minúsculo apartamento em Manhattan, dividido com uma amiga. Motola conseguiu o telefone dela: “Esta seria a primeira de uma série de estranhas histórias de Cinderela em minha vida. Mas não fiquei caminhando nas nuvens. Tommy não era nenhum príncipe encantado”. Quem estiver interessado em saber os bastidores de uma diva pop, sobre outras divas, celebridades, com as quais Mariah Carey conviveu em seus mais de 30 anos de carreira, este não é o livro. Uma biografia em que a cantora exerce a catarse do inicio ao fim, como se quisesse exorcizar os demônios que viviam com ela desde criança.
Mariah é filha de mãe branca e pai negro, a família teve que conviver com esta dualidade. Algo visto com preconceito e como bizarro pela vizinhança sempre branca, nas muitas casas para onde se mudaram, em Long Island, estado de Nova Iorque. Mas a família era bizarra, independente de coloração de pele. O livro abre com uma violenta briga dentro de casa entre o pai dela e o irmão mais velho. Doze policiais foram necessários para separar os dois “O caos encheu o ar com sons de palavrões, grunhidos, uivos. A casa inteira parecia tremer. E no olho daquela tempestade estavam as duas mais importante figuras masculinas da minha vida destruindo-se um ao outro”, lamenta.
Há passagens que parecem a atualização dos romances de Charles Dickens. Aos 12 anos, Alison, irmã mais velha de Mariah, a levou para a casa do seu namorado, e deu-lhe um Valium, que a fez dormir em pouco tempo. Ela diz que nunca entendeu o motivo. Dias depois lhe ofereceu cocaína, que a menina não aceitou. Alison mandou um cara com quem namorava apanhar Mariah em CSA. Ele a levou a um drive-in, e a agarrou. Por sorte, um senhor passava por perto, quando viu um adulto, negro, com uma menor branca, parou e ficou observando. John, o namorado de Alison, caiu na real (ainda por cima estava com um revólver). Em silêncio, levou Mariah para sua casa.
LIBERTAÇÃO
Mariah Carey saiu de casa aos 17 anos. Casou com Tommy Motola aos 19 anos. Seu álbum de estreia, Mariah Carey, demorou um pouco para engrenar, mas subiu como um foguete nas paradas. Estacionou no primeiro lugar nas 200 Mais da Billboard durante onze semanas consecutivas. Passou 113 semanas figurando na lista das mais vendidas, rendeu quatro singles, que chegaram ao topo das paradas. Ela ganhou o Grammy de Revelação, Melhor Vocal Pop Feminino, e mais quatro indicações para o prêmio mais badalado da música. Apareceu em todos os programas importantes de TV, incluindo o de Oprah Winfrey. O disco vendeu 15 milhões mundo afora.
Com o milhão de dólares que recebeu de adiantamento, ela dividiu com Tommy Motola os custos da construção de uma mansão. Mariah chama no livro a casa de Sing Sing. Um trocadilho com o verbo 'sing' cantar, e a célebre penitenciária de Sing Sing, distante 16 quilômetros da mansão. Ela contribuiria assim para erguer o presídio em que ficou presa nos oito anos em que foi casada com Motola. “Era como se ele bloqueasse minha circulação, me afastando dos amigos, e do resto de família que me restava. Eu não podia falar com ninguém que não estivesse sob o controle de Tommy. Eu não podia sair, ou fazer alguma com alguém. Eu não podia me mover livremente dentro da minha própria casa”.
Tommy Motola é pintado como vampiresco: “Eu sentia sua presença mesmo antes de ele entrar no quarto. Me envolvendo como um nevoeiro. Feito a umidade, parecia impossível se escapar dele”. Mesmo quando, a muito custo, conseguiu o divórcio, a sombra poderosa de Tommy pairava sobre Mariah. A ele atribui o fracasso do filme e da trilha sonora de Glitter. Um musical que voltava à era disco, e foi um fiasco comercial e de crítica. Ela revela que Tommy conseguiu até retirar banners do álbum Glitter das lojas de discos. Por causa do fracasso, a Virgin chamou a cantora pra renegociar o contrato, de assombrosos cem milhões de dólares, o maior já feito na indústria fonográfica. Pior. O lançamento de Glitter, o álbum, foi marcado para o fatídico 11 de setembro de 2001, dia em que as Torres Gêmeas foram abaixo.
Resiliência a palavra da vez, aplica-se à Mariah Carey, que se afastou do pop que se reinventou com o álbum The Emancipation of Mimi, de 2005, aproximando do que predominava na música americana na época, Pharell Williams, Snoop Dog, Twista. Ela não era leiga no rap, quando começou com os frilas nos backing vocals, fez muito para a Def Jam, gravadora pequena de grandes rappers, Beaties Boys, L.L Cool J, Public Enemy, entre outros. Emancipation of Mimi ('Mimi' é seu apelido de criança) foi a volta por cima de Mariah, o disco mais vendido da primeira década deste século. Uma história que põe por terra o mito de Cinderela, mas chega a um final feliz, embora com páginas demais, 409. Com 300, estaria de ótimo tamanho.