“Não tínhamos conta em banco. Todo o dinheiro que entra¬va ficava guardado dentro de um meião de futebol atrás da porta do meu quarto. Os gastos eram decididos em conjunto, conforme as necessidades de cada um. Mas o material para o time de futebol (camisas, chuteiras, calções, meias, bolas e maleta dos primeiros socorros) tinha prioridade total (...). Nosso café da manhã demorava horas. Comprávamos fru¬tas do seu Parrudo, em um sítio próximo. Pão, leite e mantei¬ga na padaria do Largo da Taquara. Depois do café, passávamos um bom tempo debaixo do pé de carambola, fumando um baseado, conversando e rindo muito”
O trecho entre aspas foi pinçado do livro Cai na Estrada com os Novos Baianos ( Agir), da paulista Marília Aguiar, que viveu a aventura do grupo desde o início (prefácio de Zélia Duncan, posfácio Paulinho Boca de Cantor). Uma aventura libertária, como poucas no Brasil da época do regime militar. A comunidade que um bando de jovens, nem todos baianos, formou num sítio em Jacarepaguá provou-se tão subversiva quanto os grupos de guerrilheiros que enfrentaram a ditadura com armas.
O historiador oficial dos Novos Baianos até aqui estava sendo Luis Galvão, com Novos Baianos: A História do grupo que Mudou a Música Brasileira, atualização da biografia que lançou pela Editora 34. Moraes Moreira também contou a história da banda, em livros, um dele no formato de cordel, o que limitou a narrativa pela amarração às rimas. Outros livros complementam a história, feito Mágicas Mentiras, do artista plástico Antonio Luís Martins (autor da capa de Acabou Chorare), ou Meu Caminho É Chão e Céu, de Dadi Carvalho (da Cor do Som, que morou na comunidade dos Novos Baianos até meados dos anos 70).
Cai na Estrada com os Novos Baianos é diferente dos demais relatos, até pela origem da autora. Marília Aguiar até 19 anos vivia com os país, numa família de classe média bem situada, num bairro chique de São Paulo, estagiava no escritório de Massao Ohno. Foi Ohno que pediu que ela a representasse na premiére do filme A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla. Foi assim que conheceu Paulinho Boca de Cantor, com quem iniciou um relacionamento que duraria vinte anos, e com quem teria uma filha e dois filhos.
A família dela viajou para o interior, e Maria abriu a casa para os baianos. O pai deu uma incerta, espantou-se com a bagunça, e deu um ultimato à filha. Voltaria. Se encontrasse aqueles maconheiros chamaria a polícia. Ele voltou. Não encontrou os maconheiros nem a filha, que foi embora com os baianos. A memória de Marilia é prodigiosa. Ela detalha as casas ou apartamento em que a trupe dos Novos Baianos descolaram para morar. Não foram poucos, e precisava ser uma espaço que coubesse muitos. Além do núcleo da banda, Moraes, Galvão, Baby e Paulinho Boca, havia os agregados, alguns músicos, outros amigos. Praticavam um comunismo primitivo, ninguém era dono de nada, ao mesmo tempo dono de tudo.
A badalação em torno do grupo atraiu para eles os mais poderosos empresários da época. Um dos primeiros foi Marcos Lazaro, que desistiu do grupo totalmente incontrolável.
Sem empresário não havia dinheiro, e sem dinheiro acumulavam-se dívidas. Esta situação econômica empurrou o grupo para a vida alternativa em comunidade. Não se questionava quem era ou de onde vinha o visitante que se tornava mais um na turma, como foi o caso de uma namorada de Tonho, como Moraes Moreira era chamado no grupo, que veio de Salvador com uma irmã, Gladys Joplin:
“E o pior, Gladys Joplin surtou. Gritava muito e ficava nua. Isso durou dias e noites intermináveis. Limita¬mos o espaço dela ao porão, mantendo-a trancada e nos revezando na vigia do lado de fora, à espera de algum familiar que viria da Bahia para levá-las embora. Certa manhã acordamos com um silêncio inesperado. Gladys Joplin teria dado uma trégua? Nem deu tempo para conferir. Seu Adachi, o dono do armazém, mandou nos chamar urgen¬te. Ela estava lá! Tinha conseguido fugir, descalça e vestida apenas com um dos casacos da dona Ágata. Entrou cedinho no armazém cheio de gente naquela hora, comprando pão para o café da manhã, se postou bem no meio do corredor e, num gesto rápido, arrancou o casaco, exibindo o corpo completamente nu. Então, começou a cantar a altos brados. Foi um escândalo! Finalmente o pai das meninas veio da Bahia e levou as duas de volta (...) Após aquele acontecimento no armazém, as invasões repenti¬nas da polícia se tornaram ainda mais frequentes, e nossa perma¬nência na casa foi ficando perigosa demais”. Ameaçado por um ação da temível R.O.T.A, o grupo fugiu de madrugada, todos numa Kombi velha, com a roupa do corpo e os instrumentos. A rota de fuga ia dar sempre na Bahia. Onde pontificava a figura atrabiliária do delegado Gutenberg, que detestava hippies, em particular, e cabeludos em geral. De uma feita, ele pegou os Novos Baianos e sua turma, colocou na prisão, e tosquiou todo mundo. Só escapou Baby Consuelo, porque foi protegida pelas companheiras de cela. Também, Marilia, Galvão e Moraes, que se encontravam na praia de Arembepe.
UTOPIA
Marilia é minuciosa ao contar sobre a lendária cobertura em Botafogo em que os Novos Baianos montaram um acampamento, e onde receberam a visita de João Gilberto que mudaria o rumo do grupo, e da MPB. Mas também conta como, antes, viviam de favor na casa dos amigos e conhecidos. Esperavam, por exemplo, João e Lucinha Araújo saírem de casa para pegar comida. Quem abria a porta para ele era Cazuza. Ela conta também em detalhes as visitas e a influência de João Gilberto que foi além da música: “Apresentou pra gente a obra de Paramahansa Yogananda e trouxe para o apartamento o primeiro livro dele que conhecemos, a Autobiografia de um iogue. O livro passou de mão em mão, quase todos se interessaram e leram. Alguns assimilaram seus ensinamentos e levaram para toda a vida”, conta Marilia, que guarda o livro com ela até hoje.
A mudança para o Cantinho do Vovô, o lendário sito em Jacarepaguá, onde foi criada boa parte da música de Acabou Chorare. O sítio foi o ápice da comunidade, as portas e portões nunca eram fechados, quem chegasse seria bem-vindo:
“A vida no Cantinho do Vovô era muito alegre. Tanta coisa acontecia que até perdíamos a noção do tempo. Tinha música ao vivo o tempo todo. Moraes Moreira e Pepeu, principalmente, já acordavam tocando. Salomão instalou caixas de som nas árvores e, então, de qual¬quer ponto do sítio era possível ouvir o que estava rolando lá atrás no estúdio. Me lembro do dia em que estavam compondo “Besta é Tu” e de como essa música rapidamente tomou conta do sítio e contagiou todo mundo”.
A utopia vivida no Cantinho do Vovô durou quatro anos. Até a realidade entrar pela porta aberta. As crianças estavam crescendo e precisavam ir para a escola. Marília, ou Marilhona, mulher de Moraes Moreira decidiu que iria para a casa dos país no Leblon por causa dos filhos. Moraes acabou optando pela família, e saiu do grupo em 1975. A resistência de Galvão em aceitar regras dos empresários contribuía para as dificuldades financeiras do grupo, que, em 1976, devendo vários meses do aluguel, viu-se obrigado deixar o sítio. Foi o começo do fim dos Novos Baianos. Marilia e Galvão mudaram-se para São Paulo, ela conseguiu um emprego divulgando filmes da Embrafilme. Galvão começou carreira solo. Cai na Estrada com os Novos Baianos, não é apenas a vida da autora com um grupo musical anárquico, mas o retrato de parte de uma geração, que ousou viver o sonho, e descobriu que, feito acontece com todos os sonhos, chega o momento de acordar.