'Estamos em festa numa casa em chamas', diz Muhammad Yunus sobre os efeitos da pandemia na economia

Preocupado com o pós-covid, economista sugere aumentar o empreendedorismo para substituir empregos que foram fechados e criar empresas que não tenham o objetivo de distribuir dividendos, focadas na solução de problemas da sociedade
Estadão Conteúdo
Publicado em 20/12/2020 às 17:41
Muhammad Yunus Foto: AFP


Vencedor do Nobel da Paz em 2006, o economista Muhammad Yunus vem propondo uma reforma no sistema econômico e social para o mundo pós-covid, que batizou de "Novo Programa de Recuperação". Sua ideia é aumentar o empreendedorismo para substituir empregos que foram fechados e criar empresas que não tenham o objetivo de distribuir dividendos, focadas na solução de problemas da sociedade - algo semelhante ao que defendia antes da pandemia. Ele destaca, porém, que, como a economia derrapou e governos e empresas estão fazendo esforços para reacelerar a máquina, agora é o momento para mudar.

"A política deveria ser a de não voltar para aquele mundo, porque ele estava levando para o fim da existência da humanidade em função do aquecimento global, da concentração de riqueza e da invasão da inteligência artificial", disse, em entrevista por e-mail.

Conhecido como o "banqueiros dos pobres", por ter criado em Bangladesh um banco de concessão de empréstimo a pessoas de baixa renda, Yunus destaca que, segundo seu programa de recuperação, o Estado deve ter o papel de criar estruturas jurídicas e administrativas para apoiar as empresas sociais.

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Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Em um artigo publicado no início da pandemia, o sr. escreveu que a sociedade estava à beira do abismo antes da covid-19. Como chegamos a essa situação?

Estou tentando apontar a situação do mundo na época pré-pandêmica. A pandemia parou a máquina econômica. Agora, um esforço está sendo feito por governos e empresas para voltar à situação pré-pandêmica. A nossa política deveria ser a de não voltar para aquele mundo, porque ele estava levando ao fim da existência da humanidade em função do aquecimento global, da concentração de riqueza e da invasão da inteligência artificial, que torna o homem redundante no mundo. Os cientistas têm alertado que o aquecimento global não nos permite muito mais tempo neste planeta. Voltar ao mundo pré-pandêmico seria suicídio. Agora que a economia parou, podemos reorientá-la em uma direção diferente, em direção a um mundo de três zeros: zero emissão de carbono, zero concentração de riqueza e zero desemprego.

O sr. argumenta que o sistema deve ser redesenhado com maior consciência social e ambiental. Vê algum país nessa direção?

Não temos outra opção que não seja redesenhar o sistema. Estamos vivendo em uma casa em chamas, mas o sistema nos mantém alheios a isso. Estamos nos mantendo ocupados com uma grande festa dentro de uma casa em chamas. Estamos celebrando nosso crescimento econômico e os milagres tecnológicos, cantando músicas de prosperidade e ignorando que nossa própria festa está colocando lenha em uma fogueira que queimará nossa casa. Jovens estão percebendo isso e tentando se desvencilhar da festa. Eles estão acusando seus pais de roubar o futuro deles. Governos estão mostrando preocupação ao anunciar metas para zerar a emissão de carbono. Empresas estão se comprometendo com os objetivos de desenvolvimento

sustentável da ONU. Mas não temos certeza de quanto isso é real, de quanto é apenas para o consumo da mídia. Precisamos tomar decisões escandalosamente ousadas para mudar nossa economia baseada em perseguir o crescimento do PIB. Os governos estão seguindo seu habitual caminho politicamente seguro. Eles estão anunciando metas ambientais, mas não há urgência visível na maioria dos países. Nenhum país está mostrando qualquer preocupação em relação à concentração de riqueza.

O sr. também tem dito que as empresas devem ser criadas exclusivamente para resolver problemas da sociedade, sem o objetivo de distribuição de dividendos. Isso significa romper com o capitalismo?

O capitalismo é baseado na suposição de que os seres são movidos por interesses próprios. Estou reformulando essa suposição para aproximá-la de seres humanos reais. De acordo com minha formulação, os seres humanos são impulsionados em parte por interesse próprio, mas principalmente pelo interesse coletivo. Uma vez que o interesse coletivo se tornar parte da motivação humana, teremos de encontrar um formato de negócio apropriado, que garantirá a solução de problemas coletivos. Negócios movidos a interesses coletivos não precisam de distribuição de dividendos. Precisamos de soluções para problemas coletivos de uma forma sustentável financeiramente. É isso que chamo de ‘negócios sociais’. O lucro é colocado de volta no negócio. Nessa nova versão da teoria, as empresas tradicionais funcionam lado a lado dos negócios que não distribuem dividendos. Isso é deixado para a escolha dos indivíduos. Uma pessoa pode escolher por um negócio de maximização de lucro, por negócios sociais ou por ter ambos os tipos de negócios. Ambos os negócios participam do mesmo mercado, sob as mesmas autoridades reguladoras.

O que levaria as pessoas a investirem, já que não seria lucro?

Se você acha que o lucro é o único motivo para as pessoas quererem usar seu dinheiro, você está errada. As pessoas usam dinheiro por vários motivos, incluindo doar para caridade. Colocaria desta forma: as pessoas investem em negócios sociais porque, para elas, ganhar dinheiro pode significar felicidade, mas fazer outras pessoas felizes pode ser uma felicidade ainda maior. Se for assim, as pessoas vão preferir investir em negócios sociais. Em última análise, tudo está enraizado em nossa mente: onde nossa mente encontra felicidade e o que ela reconhece como felicidade. Nossa vida é sobre maximização da felicidade, não sobre maximização de lucro. A teoria capitalista nos enganou em muitos níveis. Pior de tudo, nos fez acreditar que a felicidade pode ser medida pela quantidade de dinheiro.

Segundo seu Novo Programa de Recuperação, a divisão de tarefas entre cidadãos e governos deve ser quebrada, com cidadãos tentando chegar a soluções sociais. Isso significa uma redução do tamanho do Estado?

A teoria capitalista presume que os cidadãos devem se ocupar em maximizar o lucro e pagar impostos. Com a receita tributária, o governo deve resolver os problemas comuns. O nível de envolvimento do governo na resolução de problemas sociais leva à polarização política. Alguns argumentam que o governo deve tributar o mínimo e ficar de fora dos problemas sociais, que devem ser deixados para as forças do mercado. Outros argumentam que o governo deve tomar a responsabilidade e resolver os problemas sociais, taxando as pessoas para levantar recursos. Estou argumentando que, sob nenhuma circunstância, os indivíduos devem permanecer espectadores dos problemas sociais. Os indivíduos devem usar sua criatividade para resolver esses problemas.

Qual seria o papel do Estado então?

O governo inteligente deve criar espaço e incentivo para que os cidadãos se tornem ativos para solucionar problemas sociais. Estou propondo um novo papel do governo, onde ele envolve toda a nação com um sistema legal apropriado, políticas e inspirações para se criar negócios sociais. A construção de novas instituições será o cerne desse processo. Novas instituições financeiras devem ser construídas para que cada jovem possa acreditar que não terá de ficar na fila por um trabalho - ele poderá se tornar um empreendedor. O governo pode incentivar as empresas sociais a assumirem o atendimento de saúde das pessoas de baixa renda. Há muito a ser feito pelo governo nesse processo

O sr. defende o microcrédito como forma para reduzir a pobreza. Como ampliá-lo? O governo deveria participar disso?

O governo não deve operar nenhum programa de microcrédito, porque há chance de que isso seja politizado quase imediatamente e se transforme em um programa de caridade. O governo deve criar leis para dar licenças para que as pessoas criem bancos para microempreendedores. Essas licenças não devem ser dadas para se criar bancos com fins lucrativos. Se for permitido, eles se tornarão ‘bancos agiotas’.

O sr. costuma dizer que o empreendedorismo pode ser uma solução para o desemprego. No Brasil, às vezes o empreendedorismo é confundido com trabalho informal precário. O empreendedorismo pode realmente substituir os empregos formais que foram destruídos?

Concordo em relação a essa situação de precariedade. Essas pessoas estão nessa situação porque não podem sustentar seus negócios. Não há financiamento para seus negócios. Financiamento é o combustível para o empreendedorismo. Os microempreendedores precisam de bancos sociais especializados. A pessoa que começou a vender camisetas na rua pode estar vendendo cinco por dia, mas tem capacidade para vender dez vezes mais. Se essa pessoa não tem dinheiro para expandir seu negócio, ela desiste e procura um emprego. Se o dinheiro estivesse disponível, ela teria mais opções. Acredito que todos nascem como empreendedores, mas o sistema os desorienta totalmente para acreditarem que um emprego é o destino de todos.

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