Milhares de russos estão deixando seu país natal após a invasão da Ucrânia. Entre os que deixam Rússia estão cientistas, pesquisadores, desenvolvedores de softwares, entre outros.
Em entrevista à BBC News, o empresário de tecnologia Lev Kalashnikov classificou a saída dos russos como ''a maior fuga de cérebros da história moderna da Rússia''. Ele acredita que a Geórgia e outros países poderão se beneficiar com a situação. Ele criou um grupo para expatriados no aplicativo de mensagens Telegram e já são quatro mil membros no grupo, que discutem onde encontrar acomodação e como abrir contas bancárias.
Entre os motivos para a saída da Rússia, o especialista em relações internacionais e coordenador do curso de ciência política da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Thales Castro, coloca as pesadas sanções econômicas, a suspensão da atividade de centenas de empresas no território, bem como a forte desvalorização do rublo e a oposição ao regime de Putin.
- Jogador pernambucano desembarca no Recife após fugir da guerra na Ucrânia
- EUA e China se reúnem em Roma para abordar guerra na Ucrânia
- Usina nuclear de Chernobyl: Ucrânia acusa exército russo de cortar eletricidade
- ''Graças a Deus, estou perto da família'', diz jogador pernambucano que fugiu da guerra na Ucrânia
- Rússia e Ucrânia retomarão negociações na terça-feira
- Economia da Ucrânia afunda e segurança alimentar mundial corre perigo, alerta FMI
"É um somatório de fatores. A guerra precipitou uma corrosão do sistema econômico-financeiro e certamente é fator causal muito significativo para essa migração. Quando um país fica excluído do sistema internacional de pagamentos e compensações, o Swift, isso atinge em cheio a cooperação acadêmica internacional, que precisa desse intercambio onde o Swift era o lastro para possibilitar verbas internacionais, bolsas, toda a integração. Você tem ruptura, tem corrosão do valor da moeda nacional, o rublo, além do sentimento sentimento de animosidade. Vimos o rublo despencando, virou pó, uma desvalorização que está entre 30% e 35% destrói economias pessoais, economias familiares, além de não haver condições estáveis para o segmento acadêmico", explicou Thales Castro à Rádio Jornal.
A União Europeia, Estados Unidos, Reino Unido e Canadá fecharam seu espaço aéreo para voos vindos da Rússia, então os russos que deixam o país estão viajando a nações onde os voos ainda são permitidos e onde não há exigência de vistos, como a Geórgia, Azerbaidjão, Sérvia, Turquia, Ásia Central, Sul do Cáucaso e Armênia.
Uma guera desastrada como essa impacta o pensamento científico e a transformação social a médio e longo prazo. É uma situação danosa para a Rússia, que está vendo pesquisadores encontrando guarida em outros países.Thales Castro, cientista político
Diariamente, o comboio que faz a ligação entre São Petersburgo (Rússia) e Helsinque (Finlândia) fica totalmente preenchido por cidadãos russos. O expresso Allegro é, atualmente, a única ligação ferroviária entre a Rússia e a União Europeia, fazendo o trajeto cinco vezes por dia. Esta ligação é também importante dada a ausência de voos que liguem a Rússia ao resto da Europa.
"Países que não conseguem a realização universal de politicas públicas de retenção do capital humano, a chamada retenção dos cérebros, setor estratégico para a economia nos mais diversos segmentos do saber, tecnologia da informação e comunicação, setores médico-científico, setores humanos, professores, pesquisadores, pensadores, quando um país não consegue a realização plena de políticas públicas, esse grupo privilegiado migra, porque recebe acolhida em outros países que fornecem qualidade de vida, estabilidade econômica e política pública para que esses seres pensantes continuem a pesquisa. A Rússia tem tradição acadêmica forte, mas pesquisadores têm migrado buscando um pouco de estabilidade e condições mínimas de sobrevivência", disse Thales.
Muitos dos novos emigrantes são profissionais da indústria de tecnologia que podem trabalhar remotamente. Um desenvolvedor de videogames contou à BBC que ele e a maioria das pessoas que conhecia discordavam da política russa e agora sabiam que qualquer protesto seria reprimido com violência.
Russos estão alegando que anova lei de "traição do Estado" que entrou em vigor recentemente na Rússia está entre os motivos para a fuga. Qualquer pessoa que expresse apoio à Ucrânia pode enfrentar penas de prisão de até 20 anos.
No início de março, quase 7.000 cientistas, matemáticos e acadêmicos russos enviaram uma carta aberta ao presidente Vladimir Putin para protestar "energicamente" contra a guerra na Ucrânia.
"Nós, cientistas e jornalistas científicos que trabalham na Rússia, protestamos energicamente contra a invasão militar da Ucrânia lançada pelo exército russo" há uma semana, escreveram em uma carta publicada pelo site de notícias trv-science.ru.
Ainda de acordo com a carta, o objetivo de se tornar uma grande nação científica "não pode ser alcançado quando as vidas de nossos colegas mais próximos –cientistas ucranianos– estão em perigo pelo exército russo". "Estamos convencidos de que nenhum interesse geopolítico pode justificar as mortes e o banho de sangue. A guerra só levará à perda total do nosso país, pelo qual trabalhamos", acrescentaram.
Tensão e xenofobia
Há preocupação, inclusive, se é seguro falar russo em público em outros países. Nos últimos dias, os russos que tentam seguir para outros pontos da Europa percebem que nem sempre são bem recebidos nos novos destinos. A vida para os russos que vivem fora do país de origem também não é fácil. Há relatos de xenofobia e de aumento de sentimentos anti-Rússia.
No Brasil, por exemplo, a Associação de Bares e Restaurantes de São Paulo (Abrasel) criticou os anúncios feitos por bares e restaurantes sobre medidas de repúdio à invasão da Ucrânia pela Rússia, como a retirada do estrogonofe, um prato russo, de cardápios e a mudança de nome de drinques, caso do Moscow Mule, que virou Kiev Mule, fazendo referência às capitais dos países.
A Abrasil afirmou que o setor “pode e deve se opor à barbárie, mas sendo sempre muito cauteloso para não fomentar mais ódio”. Nesse sentido, a associação afirma que essas ações, que segundo ela também têm ocorrido em outras partes do mundo, contrárias à gastronomia russa, acabam fomentando a xenofobia contra o povo russo. No comunicado, a Abrasel destacou que há relatos de russos que vivem no Brasil há anos e estão sofrendo ameaçadas em redes sociais, com mensagens de ódio, o que ela considera ser “inaceitável”.