Opinião

Artigo de Gustavo Krause: O banqueiro dos pobres, Nobel da Paz e o desafio político

Depois de uma guerra sangrenta com o Paquistão, em 1971, a emergente Bangladesh nascia com fortes indícios de uma condenação ao subdesenvolvimento

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GUSTAVO KRAUSE

Publicado em 17/08/2024 às 19:12
Professor Muhammad Yunus é personagem de uma história redentora - AFP

Depois de uma guerra sangrenta com o Paquistão, em 1971, a emergente nação, Bangladesh, nascia com fortes indícios de uma condenação ao subdesenvolvimento. À época, o Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Henry Kissinger (1923-2023) referiu-se ao novo país independente como um “caso perdido”.

De fato, numa área de pouco mais de 148 mil Km², sujeita a graves desastres naturais, com quase 100 (no ano da libertação) dos 177 milhões de habitantes que, hoje, abriga, todos os sinais apontavam na direção de uma penúria irremediável.

Porém, nascer pobre é uma casualidade. Não é um destino. A pobreza também não é uma condição humana. Trata-se se uma imposição artificialmente construída pela visão de mundo repleta de organizações que produzem um enorme paradoxo: não falta dinheiro e o que sobra é uma enorme multidão de pobres, vulneráveis que não tem acesso ao caminho da transformação individual e coletiva que se chama oportunidade.

Pois bem, a nação bengali oferece ao mundo um notável exemplo de revoluções silenciosas movidas pelo sentimento de que não há bem-estar senão como uma sensação que seja compartilhada por todos. Quem personifica este exemplo é o Professor Muhammad Yunus personagem de uma história redentora.

Em 1972, demitiu-se do cargo de professor assistente na Universidade Estadual do Tennessee, nos Estados Unidos, estimulado pela batalha da independência para ajudar seus compatriotas a construírem uma nova nação, livre e próspera. Assumiu a chefia do Departamento de Economia da Universidade de Chittagong e pretendia seguir a carreira acadêmica.

“No entanto, narra no livro de sua autoria Um mundo sem pobreza – A empresa social e o futuro do capitalismo (Ed. Atica – São Paulo, 2008), aconteceu algo que tornou isso impossível: a terrível onda de fome em Bangladesh entre 1974 e 1975 [...] Para mim ficava cada vez mais difícil ensinar aos alunos as elegantes teorias econômicas e explicar o supostamente perfeito funcionamento do mercado livre enquanto lá fora a morte despropositada assolava Bangladesh [...] Envolvi-me com a questão da pobreza não como autoridade, acadêmico ou pesquisador, mas sim porque a pobreza estava ao meu redor e eu não podia dar-lhe as costas”.

Ali nascia o “O banqueiro dos pobres”. Na aldeia de Jobra, trabalhando com os agricultores e artesão, percebeu o desamparo e as dificuldades dos pobres em obter quantias irrisórias para sobreviver. Foi a aldeã Sufiya Begum quem revelou o drama da trágica existência: dependia do agiota local para comprar vime e confeccionar banquinhos e “vender” a ele o produto por míseros dois centavos de dólares. Yunus e seus alunos identificaram as 42 vítimas da agiotagem; emprestaram 856 takas equivalentes a 27 dólares do próprio bolso.

Resultado, inadimplência zero. No entanto, ampliar empréstimos esbarrava na descrença e na burocracia imposta pelas instituições bancárias aos tomadores miseráveis. Yunus, então, recebia e repassava os empréstimos, antecipando o que viriam a ser “as sementes revolucionárias de microcrédito”.

Incansável, conseguiu convencer o diretor administrativo do Banco Agrícola do País abrir uma filial em Jobra, um pequeno projeto de Filial Experimental Grameen do Banco Agrícola (“grameen” foi mencionado pela primeira vez) que obteve o mesmo êxito das iniciativas informais.

Em 1983, sob a estrutura de uma lei especial nasceu o banco dos pobres, denominado Banco Grameen alicerçado em princípios e consistentes conceitos-chave: 1. A microfinança pode ser uma poderosa ferramenta para aliviar a pobreza e capacitar indivíduos marginalizados, proporcionando-lhes acesso a serviços financeiros e oportunidades; 2. Uma abordagem de baixo para cima que prioriza as necessidades e aspirações dos pobres pode levar a soluções inovadoras e ao desenvolvimento sustentável; 3. O empreendedorismo social e a fusão de princípios empresariais com objetivos sociais podem criar um sistema financeiro mais inclusivo e equitativo.

Em 2006, o Grameen Bank e seu fundador foram agraciados com o Nobel da Paz. Os números e a dimensão do banco impressionam: 6,6 milhões de mutuários (97% são mulheres, Yunus diz: “Primeiro descobrimos a mãe. Depois a criança – não por obrigação moral, mas sim por razões puramente econômicas)”, 5,72 bilhões de dólares em empréstimo, 71.371 vilarejos atendidos, 18.795 funcionários, 99% de adimplência, apenas nos anos de 1983,1991 1992, não teve lucro e o mais importante é que 64% dos tomadores de empréstimo ao longo de cinco anos ou mais cruzaram a linha de pobreza. A família Grameen é um sistema amplo, flexível, atuando em parceria com setores importantes e estratégicos para as pessoas em diversos países.

Aos 84 anos, Muhammad Yunus foi convocado, por exigência dos líderes estudantis, anuência do Presidente da República e líderes militares para chefiar o governo interino como medida essencial para superar a crise decorrente da renúncia de Sheikh Hasina, primeira-ministra, em 05/8/24, cargo que vinha exercendo desde 2009.

Apesar dos avanços impressionantes de Bangladesh no período de 1990/20/22 (crescimento médio do PIB de 5,6%), em todos os setores, persistem graves deficiências estruturais sob o peso da violência política, da corrupção endêmica e do histórico capitalismo de compadrio.

Seguir avançando é desmentir a profecia de Henry Kissinger e ratificar a necessidade de mobilizar grandes líderes para superar graves ameaças a exemplo de Yunus que, assim, respondeu ao clamor nacional: “quando estudantes que sacrificaram tanto pedem minha intervenção neste momento difícil, como posso recusar?”

PS. “Um mundo de três zeros” de Yunus e Karl Weber (Ed. Voo, Osasco -SP, 2017) é um livro cuja leitura permite acreditar num mundo melhor.

Gustavo Krause, ex-governador

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