A tragédia vem de longe, e continua

O drama que comove os pernambucanos teve início há muitos anos, em construções precárias que viraram abrigos para quem não tinha nem chão, nem teto
JC
Publicado em 09/07/2023 às 0:00


O cenário de ruínas lembra os prédios bombardeados na Ucrânia ou em outros países em guerra. Mas em Pernambuco a destruição é de outra natureza. O colapso da habitação irregular começa com bases construtivas criminosas, passa pela paralisia de agentes públicos que não parecem se importar com a gravidade de uma situação insustentável, e resulta em tragédias que não cessam em um desmoronamento. O novelo trágico é longo, e se for devidamente desenrolado, poderá revelar muitos responsáveis por aquilo que parte da população chama de acidente.
O roteiro surge, décadas atrás, com a entrega de conjuntos residenciais pouco firmes, assentados sobre a irresponsabilidade ou a ganância. Não deve ser tão difícil encontrar nomes de indivíduos que participaram dessas entregas, dos engenheiros e suas empresas aos gestores públicos que encomendaram e liberaram a moradia. A engenharia é uma ciência segura, desde que seguida em seus princípios e normas. Mas há diferenças claras, por exemplo, entre obras bem feitas e outras nem tanto. Na Europa, um túnel atravessa o Canal da Mancha, em percurso de mais de 50 quilômetros, dos quais 38 quilômetros debaixo do oceano. No Recife, túneis com menos de um quilômetro de extensão alagam sempre que chove, e juntam água o suficiente para afogar pessoas.
A inércia dos agentes públicos é outra componente cruel de um cotidiano trágico que se consuma lentamente. Uma vez identificado o problema estrutural, os compradores ou moradores são obrigados a deixar os imóveis, por questão de justificada segurança. No entanto, o rigor com o bem-estar coletivo estanca por aí. Os prédios não são demolidos imediatamente, como deveriam. E em cidades com déficits habitacionais conhecidos, como na Região Metropolitana do Recife, os apartamentos desocupados não demoram a ser desejados pela população sem-teto, ou mesmo por habitantes de residências precárias em outros lugares. A reocupação acontece, e os agentes públicos que tiraram os primeiros ocupantes, parecem se esquecer que o problema original permanece, deixando a moradia irregular e arriscada sem impedimentos.
O que se vê em Pernambuco é o colapso da empatia. As mortes do Janga poderiam ter sido evitadas? Sim. Outras podem acontecer? Sim. Depende do real compromisso dos atuais gestores públicos, representantes do povo e agentes da Justiça com a priorização do que importa – a vida de indivíduos a mercê de desabamentos. Se a prioridade prosseguir sendo outra, as tragédias continuarão sua trajetória, para o desespero da população pendurada em residências condenadas. O destino de milhares de cidadãos que não possuem habitação decente e digna precisa ser assunto urgente, e não apenas inevitável quando a comoção acontece.

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