Uma legião à espera de morada digna no Grande Recife

A Região Metropolitana do Recife concentra mais da metade do déficit habitacional do Estado. Soluções exigirão uma ação articulada dos novos prefeitos da RMR
Ciara Carvalho
Publicado em 27/09/2020 às 6:44
CRIANÇA EM SITUAÇÃO VULNERÁVEL, EM PALAFITA Foto: BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM


Sobre os ombros dos novos prefeitos da Região Metropolitana do Recife recairá, a partir de 1º de janeiro, uma dívida histórica. É na cidade metrópole que se concentra mais da metade do déficit habitacional do Estado. Enfrentar a falta de moradia exige, antes de mais nada, achar resposta para uma pergunta obrigatória: de onde virão os milhões e milhões de reais necessários para construir ou requalificar 190 mil unidades habitacionais, número que representa a soma do déficit quantitativo e qualitativo da RMR, segundo dados das prefeituras. Como é de praxe, os gestores municipais costumam jogar essa fatura no colo do governo federal. Acontece que o horizonte é nebuloso, diante da incógnita do que será o novo programa Casa Verde e Amarela, substituto do já moribundo Minha Casa Minha Vida. Faz tempo não dá mais para se pendurar numa única saída, quando o assunto é produção de habitação de interesse social. Nem dá para resolver sozinho um passivo desumano com os mais pobres, justamente os que compõem mais de 90% do déficit. Na terceira reportagem da série Desafios Urbanos, a urgência de encontrar novas estratégias, de adotar gestões criativas e de somar esforços para assegurar o direito constitucional a uma morada digna nessa metrópole de altos e alagados. No próximo domingo (04), a saúde das contas públicas dos municípios.

BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM - Taciana mora na Comunidade do Bode, com os quatro filhos. O sonho dela é conseguir uma casa com tijolo e ter um quarto só para ela

Faz décadas, elas continuam lá, dedo na ferida exposta da desigualdade extrema. Retrato mais vergonhoso da ausência de uma política habitacional capaz de varrer da paisagem os amontoados de madeira, cercados por ratos, escorpiões, sujeira e lama. É nesse lugar, impregnado de promessas vazias, que Taciana Alexandrino de Lima, 30 anos, e os quatro filhos se equilibram numa quase vida. Por entre becos, a família se espreme, os cinco, numa palafita cujo piso ameaça desabar. Fincada num pedaço de maré morta, eles não têm nem a vista do Capibaribe como consolo. Quando chove, a maré sobe sem ter para onde ir. A água vai para dentro das casas, com todo o lixo e bichos trazidos pelo mangue. O barraco de Taciana e de todos os outros moradores nem deveriam mais estar lá. Prometida pela atual gestão, a retirada das palafitas da Comunidade do Bode, no Pina, Zona Sul do Recife, ficou no terreno das intenções. Entra e sai prefeito, o sonho de Taciana continua inacessível: ter uma casa de tijolo e um quarto só dela.

Sonho legítimo, interditado por uma espera sem fim. "Às vezes, a gente se revolta. Fica sem esperança. Como se esse dia nunca fosse chegar. Mas não acho justo que meus filhos cresçam com ratos e escorpiões. Será que eles não merecem uma vida melhor?", pergunta Taciana, como se essa fosse mesmo uma dúvida. Contam-se aos milhares os que não têm uma casa para morar na Região Metropolitana do Recife. Comum a todos, o problema, no entanto, é notadamente mais dramático em quatro das 14 cidades da região. Somadas, Recife, Jaboatão dos Guararapes, Olinda e Paulista respondem por 80% do déficit habitacional da RMR.

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Há um descompasso gritante entre as ações das prefeituras e a crescente demanda por moradia de qualidade. Um cenário que tende a se agravar pela indefinição de recursos e do modelo do novo programa habitacional do governo federal batizado de Casa Verde e Amarela, anunciado no mês passado para substituir o Minha Casa Minha Vida. Com um texto vago, a medida provisória que cria o programa não fala em subsídios, apenas em redução de taxa de juros para o financiamento dos imóveis. Com isso, deixa de fora da produção de novas unidades os que mais precisam de uma casa.

"Da forma como está formulado hoje, o novo programa não vai atacar o grosso do déficit habitacional, que é o contingente da população mais pobre, que não está inserida no mercado formal nem tem acesso a crédito bancário. Com todas as críticas ao Minha Casa Minha Vida, não há como negar que o programa contemplava a faixa 1, subsidiando até 90% da residência entregue. Essa mudança de norte na política habitacional vai agravar a situação para os mais carentes", avalia o arquiteto e urbanista Vitor Araripe, do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-PE). O próprio governo federal já avisou que, até o final deste ano, a torneira está fechada para financiar novos projetos de produção de moradia. Só vai ter dinheiro liberado para os habitacionais que já foram contratados ou estão em fase de execução.

É nesse ambiente de recursos escassos e incertezas nos rumos da política federal que os prefeitos eleitos vão assumir a gestão no próximo ano. Uma razão a mais para que o enfrentamento do déficit se dê, pela primeira vez, de forma conjunta e articulada. Como estratégia de pressão e de planejamento. "Eu só vejo solução para o problema da habitação se ele for pensado na perspectiva metropolitana. Não há como Recife, Jaboatão, Paulista, nenhum município resolver sozinho essa questão. O grande negócio é estudar esse tecido urbano da metrópole como uma cidade única, definindo, junto com o planejamento urbano, as áreas para receber essas novas unidades habitacionais, quais as prioridades e formas de financiamento. Os novos gestores têm que assumir esse protagonismo da governança metropolitana. Precisamos começar a falar disso já no primeiro mês da gestão", argumenta Bruno Lisboa, presidente da Companhia Estadual de Habitação e Obras de Pernambuco (Cehab).

ATUAÇÃO EM BLOCO

A secretária-executiva de Habitação de Jaboatão dos Guararapes, Ana Catarina Albuquerque, não só defende o enfrentamento regional do tema, como já propõe uma primeira batalha a ser travada pelas prefeituras da RMR. "É certo que o texto da MP do Casa Verde e Amarela é muito vago. Então é preciso uma força conjunta dos municípios para atuar, via bancada federal, no sentido de manter e melhorar o atendimento à faixa 1 do Minha Casa Minha Vida. Se queremos avanços, precisamos atuar em bloco na regulamentação da medida provisória no Congresso", afirmou. Apesar da indefinição sobre os critérios de assistência e subsídios para os mais pobres, Ana Catarina destaca um aspecto do novo programa que ela considera mais racional: a aposta em regularização fundiária e requalificação das áreas com habitação de interesse social.

"É uma mudança de visão, que, ao meu ver, é muito positiva. Evitar a saída das pessoas das áreas onde elas moram é mais barato, impacta menos na vida das comunidades e traz resultados mais rápidos do que ficar esperando a construção de novos habitacionais", avalia a secretária de Jaboatão. Ela cita que 80% do déficit de moradia do município é qualitativo, de pessoas que moram em ocupações precárias, sem a posse da terra e sem acesso à infraestrutura. "Dessas, só 20% estão em áreas de risco, o que exige, de fato, a transferência das famílias." Ana Catarina lembra uma outra realidade que é comum à metrópole: a indefinição dos territórios municipais na hora da prestação do serviço à população. Em Jaboatão, bairros como Curado e Ibura fazem limite com Recife e têm pedaços nas duas cidades. Não raro, no jogo do empurra-empurra das prefeituras, para saber de quem é a responsabilidade pela oferta dos serviços, quem sai perdendo é sempre o cidadão.

A importância da regularização fundiária em uma cidade como Paulista é tão grande que impacta 70% das unidades habitacionais do município. "Até hoje os terrenos constam no cartório como glebas. A maior parte da população não tem o documento de posse de suas casas, por serem fruto de ocupações irregulares. Estamos fazendo um esforço para legalizar essa documentação, com a emissão do Registro Geral de Imóveis, sobretudo para a população de baixa renda. Essa tem sido a base da nossa política habitacional", diz o secretário de Habitação de Paulista, Dudu Couto. Ele destaca que a aprovação, em 2017, da Lei 13.465/17, conhecida como Lei de Regularização Fundiária Urbana, ou Lei de Reurb, tem ajudado muito nesse processo, porque facilitou o reconhecimento da titularidade da terra para quem vive em áreas com infraestrutura precária.

No Recife, enfrentar o déficit qualitativo é tão desafiador quanto garantir a produção de novas unidades habitacionais para moradia popular. A capital possui 74 Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) que, em sua maioria, ainda esperam por urbanização e infraestrutura. Levantamento feito pela própria prefeitura em 2014 apontou que 30% do território é composto por mais de 500 Comunidades de Interesse Social, as chamadas CIS. No processo de revisão do Plano Diretor do Recife, os movimentos populares pressionaram o poder executivo para transformar algumas dessas CIS em Zeis, o que garantiria uma maior proteção aos moradores dessas áreas, mas apenas a Comunidade do Pilar, no bairro do Recife, foi incorporada ao projeto que está em análise na Câmara dos Vereadores.

BRENDA ALCÂNTARA/JC IMAGEM - Maria Eduarda mora numa casa no pé de uma barreira no bairro de Dois Unidos, onde, no ano passado, sete pessoas morreram soterradas após o deslizamento de uma barreira vulnerável da barreira.

Na sua face mais extrema, o preço por não enfrentar o déficit estrutural de habitação tem sido cobrado com vidas perdidas. Novamente, uma conta trágica que não fica restrita a um ou outro território da Região Metropolitana. A geografia da RMR mostra que, em maior ou menor número, todas as cidades possuem moradores ocupando áreas de risco nos morros e encostas. Depois de experimentar alguns anos, sem enxurrada de mortes, os moradores da Região Metropolitana voltaram a vivenciar essa dor no ano passado, com dezenas de novas vítimas. Não faz nem um ano o Recife acordou na madrugada do dia 24 de dezembro com o desabamento de uma barreira no bairro de Dois Unidos, Zona Norte da capital, que soterrou sete pessoas.

Maria Eduarda Saldanha da Silva, 19 anos, não morava lá quando as duas casas, onde as vítimas estavam, foram engolidas pela barreira. Mas, há quatro meses, atraída por um aluguel de R$ 120,00, ela e o marido se mudaram para uma casa no pé de um barranco, poucos metros acima do local onde as residências foram destruídas. "Se der uma chuva e a barreira deslizar, a casa onde a gente mora vai junto", admite. Da porta, ela vê as ruínas de uma dos imóveis destruídos. "Sei que é arriscado e queremos sair daqui, mas foi o local que a gente podia pagar". Não há tranquilidade na hora do sono, sobretudo nas madrugadas chuvosas. Assim como milhares de outros moradores de áreas de risco, Maria Eduarda dorme e acorda com o cheiro de morte que as chuvas costumam levar para os morros da metrópole.

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