A demolição das casas modernas e a perda da memória do Recife

Para especialistas, mais do que construções representativas, são memórias históricas e culturais que a cidade está perdendo sem que nada seja feito
Amanda Rainheri
Publicado em 18/10/2020 às 10:30
Casa símbolo da arquitetura moderna é demolida em Casa Forte Foto: YACY RIBEIRO/ JC IMAGEM


Telhado com empenas, vigas de concreto armado, pedras rústicas, azulejos decorados e pilares em forma de trapézio. Os elementos que antes formavam uma das residências de arquitetura moderna mais emblemáticas do Recife agora se confundem, misturados em escombros. Há duas semanas, a casa projetada pelo português Delfim Amorim, um dos maiores nomes do estilo em Pernambuco, localizada em Casa Forte, foi derrubada. Destino semelhante teve outra casa modernista, nas Graças, na última terça-feira. A residência foi projetada por Vital Pessoa de Melo e tinha paisagismo assinado por Roberto Burle Marx. As perdas repercutiram. Para especialistas, mais do que construções representativas, são memórias históricas e culturais que a cidade está perdendo sem que nada seja feito.

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A casa que ficava no número 367 da Rua Sant’Anna foi construída em 1959 para o industrial pernambucano Miguel Vita e foi alugada durante décadas à Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH). Com influência de Oscar Niemeyer, a residência se organizava em planos distintos, interligados por rampas que permitiam um passeio arquitetônico ao redor de um pátio interno. A residência era considerada de alto luxo. Tinha lugar para dois carros na garagem – o que era raro na época - um salão com piano de cauda, uma sala de costura e seis quartos, sendo duas suítes.

“Era uma construção muito rica, com vários cômodos com funções específicas, uma área social enorme, rampas, jardim. Era, por si só, um monumento. Representava uma época, uma classe abastada do País nos anos 50. Era muito importante. É a memória que foi embora. Hoje não conheço outro exemplar desse porte com essa linguagem, que represente aquele momento”, afirma a arquiteta e urbanista Guilah Naslavsky, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autora do livro Arquitetura Moderna no Recife 1949-1972.

Filho de Delfim Amorim, o também arquiteto e professor da UFPE Luiz Amorim lembra que a construção foi listada, entre outras casas que seguiam o mesmo estilo, em um documento entregue à Prefeitura do Recife em 2013, com a indicação de que se tornasse Imóvel Especial de Preservação (IEP). “A verdade é que não há muito interesse, tanto por parte da população quanto do poder público de criar instrumentos de proteção. A população de forma geral não consegue ver o valor. Reconhecem em igrejas barrocas do século 18, por exemplo, mas não na casa dos avós, onde pode existir um patrimônio muito rico também. À essa questão ainda se soma o capital imobiliário. São inúmeros fatores que acabam contribuindo para essa situação”, aponta.

A opinião é compartilhada por Guilah Naslavsky. “São propriedades privadas. Não adianta criticar o proprietário depois da demolição. O que precisa haver é uma ação do poder público, no sentindo de criar mecanismos de proteção, para que ela não aconteça. Mas tudo é sempre moroso. O que vejo é conivência com essa situação”, aponta. Para ela, a falta de conhecimento da população é outra questão importante. “Como preservar a memória se as pessoas nem a conhecem? Não existem ações educativas. O Brasil tem um patrimônio moderno excepcional. Burle Marx, Oscar Niemeyer, reconhecidos no mundo inteiro. Mas estamos perdendo isso. O Recife é muito rico, tinha uma qualidade de arquitetura residencial muito boa, mas poucos sabem. Para muitos, o Recife Antigo é apenas o Bairro do Recife, mas na verdade é muito mais do que isso. São muitas épocas”, lamenta.

Enquanto a mobilização do poder público não acontece, outras obras somem da paisagem recifense. Na terça-feira, foi a vez do número 63 da Rua Jacobina ficar órfão da residência Emir Glasner, construída em 1972. A construção é apontada pela arquiteta Clara Reynaldo como um dos destaques da obra de Vital Pessoa de Melo, “pela setorização dos usos, pelos beirais de proteção nos quartos do primeiro pavimento, que possibilitam amplas zonas de sombra no térreo, e pela acentuada inclinação da coberta.” A casa modernista fazia uso de concreto aparente, tinha vãos com esquadrias em veneziana de madeira e um jardim assinado por Burle Marx. Nas últimas décadas, a construção já havia estado no centro de polêmicas, quando teve estrutura modificada. Em 2007, decisão judicial determinou que os jardins de Burle Marx não poderiam ser alterados. Ainda assim, a demolição total aconteceu na terça pela manhã.

Nem mesmo as edificações que possuem o título de Imóveis Especiais de Proteção, como as que estão localizadas na Avenida Rosa e Silva, também na Zona Norte da capital, recebem a devida atenção. As construções amargam há anos o abandono por parte do poder público e de proprietários. Janelas e portas chegaram a ser roubadas e o terreno passou a acumular lixo. Em abril do ano passado, as residências passaram por intervenções no telhado, que havia sido levado em ação de vândalos em 2018.

COBRANÇA

Após os recentes casos, o Instituto dos Arquitetos do Brasil em Pernambuco (IAB-PE) se pronunciou em nota. “Reforçamos a permanente necessidade de atualização dos instrumentos normativos e a efetiva representatividade nas composições dos conselhos culturais e urbanísticos, para que possam lidar com os desafios constantes desse campo de atuação. Além disso, salientamos que é necessária a ampliação dos estudos para considerar novas formas de incentivos à preservação dos bens e novos usos com eles compatíveis, garantindo a manutenção de seu valor econômico sem prejuízo de seu valor cultural”, diz um trecho.

Também em nota, a Prefeitura do Recife informou que desde 2013 classificou 107 imóveis como Imóveis Especiais de Preservação. Entre 1997, quando foi promulgada Lei Municipal 16.284 – regulamentando os IEPS, e o início da atual gestão, apenas dois imóveis haviam sido classificados como Especiais de Preservação pelo município. Na promulgação da Lei, foram classificados 154 IEPs.

Para a catalogação de um IEP, os pedidos são concedidos pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano (CDU), a quem juridicamente cabe a apreciação e deliberação sobre a inclusão dos imóveis da cidade como IEPs. O passo a passo inclui uma análise prévia feita pela Diretoria d Preservação do Patrimônio Cultural (DPPC) para avaliar tecnicamente os pré-requisitos para classificação do bem como Imóvel Especial de Preservação. Caso o imóvel preencha os critérios estipulados em Lei, o parecer então é submetido ao CDU, que decide pela sua inclusão no rol de IEPs, com criação de Decreto Municipal.

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