Conforme a Constituição Federal, a educação é um direito de todos e dever do Estado. Na prática, no entanto, quando o indivíduo é uma pessoa com deficiência, esse direito muitas vezes dá espaço às dificuldades de se ser incluído dentro do sistema de aprendizagem. Neste domingo (26), Dia Nacional dos Surdos, o JC traz uma reportagem com vivências de pessoas com perda auditiva dentro do ambiente de ensino.
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A princípio, é preciso entender que a surdez não se manifesta de maneira igual para todo deficiente auditivo. Ela pode ser congênita, ou seja, a criança adquire a deficiência ainda durante a gestação, ou pode ser desenvolvida ao longo do tempo. Além disso, a surdez possui quatro graus: leve (só pode detectar sons entre 25 e 29 decibéis), moderada (só pode detectar entre 40 e 69 decibéis), severa (só ouve sons acima de 70 a 89 decibéis) e profunda (não consegue ouvir som abaixo de 90 decibéis).
Dessa forma, muitas crianças adentram às instituições de ensino sem serem oralizadas, como foi o caso de Gabriel Pedro Alves, de 13 anos. Apesar da Lei nº 7.853/89 estabelecer que nenhuma escola pública ou privada pode recusar a matrícula de um estudante com deficiência por motivos derivados da deficiência do aluno, a mãe dele, Patrícia Ferreira, encontrou dificuldades para matricular o garoto ainda na pré-escola.
"Eu procurei algumas escolas perto de onde eu morava, mas, por causa do preconceito, ninguém quis aceitar ele. Um dia eu estava na parada de ônibus e a diretora de uma escola municipal me viu com ele e perguntou se meu filho era deficiente auditivo. Nesse momento, ela também perguntou se ele estudava e quando eu disse que não, recomendou matricular o meu filho na escola que ela dirigia", explicou a mãe, que na época morava no município do Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife.
De acordo com Patrícia, o garoto, então com 3 anos, foi bem acolhido na unidade de ensino. "Ele recebia aulas de libras, além de contar com o apoio (espécie de reforço realizado no contraturno) por dois dias na semana. Era uma escola regular, que oferecia acessibilidade. Com isso, ele passou praticamente a vida inteira estudando lá", disse.
A realidade de Gabriel, que possui surdez profunda e não faz uso de aparelho auditivo, mudou a partir de 2020, mesmo ano em que o vírus da covid-19 passou a circular em Pernambuco. Na ocasião, a mãe, o garoto e suas três irmãs, que não possuem necessidades especiais, precisaram se mudar do Cabo para o bairro do Jordão Baixo, no Recife. Em meio às incertezas trazidas pela pandemia, as crianças passaram o ano letivo sem estudar.
Em 2021, já estabilizada no novo lar, Patrícia conseguiu realizar a matrícula dos filhos em escolas municipais da capital. Os alunos, em decorrência da pandemia do novo coronavírus, passaram, então, a ter aulas online. Mas, enquanto as irmãs voltaram a possuir uma rotina diária de estudos, Gabriel, estudante do 4º ano do Ensino Fundamental, ficou impossibilitado de acompanhar as aulas, de acordo com a mãe.
"Eu acho uma situação muito injusta, porque enquanto as minhas filhas recebem as atividades, ele não recebe. Eu acho que o problema é da administração escolar, porque do mesmo jeito que as crianças ouvintes têm acesso a assistir aulas por vídeo e recebem suporte, ele também deveria receber", desabafou.
No Recife, as aulas presenciais do ensino fundamental da rede municipal foram retomadas em julho. No entanto, por causa da pandemia, as aulas estão sendo oferecidas de forma híbrida: o aluno pode optar por ir para a escola ou continuar assistindo as atividades em casa. Apesar da mudança, a situação de Gabriel não mudou. Isso porque, de acordo com Patrícia, ela, que mora sozinha com os filhos em uma casa de aluguel, está realizando a construção da sua casa própria. Segundo ela, isso a deixa sem condições de sair do lar para levar as crianças às unidades de ensino.
Para Gabriel, o que resta é a saudade de estudar e a vontade de aprender. "Sinto falta da escola e de jogar no computador na aula de apoio. Lá eu tinha amigos legais. Fico feliz quando entendo o assunto que é passado pelos professores", explicou o estudante, por meio da língua de libras.
Diante da situação narrada, a reportagem do JC entrou em contato com a Secretaria de Educação do Recife, que se manifestou por meio de nota. No texto, o órgão afirmou que "tem orientado as famílias sobre a importância da retomada das aulas presenciais nas escolas para todos os estudantes, inclusive com deficiência ou transtornos".
Além disso, a Secretaria afirmou que o seu programa de ensino híbrido realiza transmissões para todos os alunos da rede municipal de ensino e conta com tradução simultânea em libras para os estudantes surdos. "O programa de Ensino Híbrido da rede, o Educa Recife, realiza a transmissão diária de aulas por TV aberta e pela internet para todos os anos da educação infantil, ensino fundamental e Educação de Jovens e Adulto (EJA), inclusive com tradução simultânea em libras para estudantes surdos", diz trecho da nota. O texto completo pode ser lido no fim desta matéria.
Oralismo
Em conversa com a reportagem do JC sobre a criança surda dentro do ambiente escolar, a fonoaudióloga Elisabete Magnata explicou que é preciso entender que cada uma possui uma história, portanto o ideal seria que houvesse um planejamento pedagógico de acordo com a necessidade individual.
"Algumas crianças surdas podem precisar de intérprete de libras, enquanto outras, especialmente as surdas oralizadas, necessitam de apoio pedagógico especializado com estratégias pedagógicas específicas. A comunicação entre escola, família e os profissionais que acompanham a criança é fundamental para um planejamento mais adequado às necessidades individuais dela", disse.
Uma criança surda oralizada nem sempre tem a língua de sinais como primeira língua - algumas conhecem apenas o português, como é o caso de Sophie Beatriz Ferreira, de 7 anos. A menina nasceu com surdez profunda/severa nos dois ouvidos e, com três meses de idade, começou a fazer o uso de aparelho auditivo. O equipamento permitiu que a criança aprendesse as primeiras palavras. Já aos 2 anos, a pequena realizou uma cirurgia para adquirir o implante coclear em um dos ouvidos. O dispositivo, que popularmente é conhecido como ouvido biônico, é utilizado para restaurar a função da audição nos pacientes com deficiência profunda.
A partir do uso dos equipamentos e acompanhamento profissional, Sophie desenvolveu a fala e, mesmo possuindo surdez congênita, teve seu primeiro contato com a escola já oralizada. "Ela já falava direitinho quando foi para a escola, aos 2 anos. Até o momento, ela passou por três unidades de ensino da rede privada e não houve nenhum tipo de problema, ela conseguiu desenvolver o aprendizado como qualquer outro aluno", contou a mãe, Raiana Roberta Ferreira.
Segundo Elisabete Magnata, caso a criança surda tenha acesso aos sons, cabe à família dela optar por qual língua ela irá desenvolver: libras ou português. "Essa questão vai de acordo com a necessidade de cada criança. Se a criança com deficiência auditiva chega na escola falando, o ideal é que a forma de trabalhar com ela seja oralizada", ressaltou a especialista.
Apesar de não enfrentar problemas em sua aprendizagem, Sophie se deparou com uma situação desagradável em sua atual escola: a discriminação por parte de um colega na sala de aula. "Uma criança falou uma frase preconceituosa e foi muito doloroso. Eu tive que conversar com a instituição para tomar uma atitude", falou.
De acordo com mãe, a escola foi atenciosa com o acontecimento. Além disso, a unidade de ensino teria se comprometido a trabalhar com o estudante que apresentou o comportamento preconceituoso e promoveu uma mini palestra sobre deficiência, o que para Raiana foi uma atitude de acolhimento e inclusão.
O que preocupa a mãe no momento são os aparelhos da filha, que foram adquiridos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualmente se encontram ultrapassados. "Ambos os aparelhos têm uma durabilidade e eles já estão apresentando defeitos. Continuamos dependendo do sistema para que faça novamente o fornecimento dos equipamentos, mas é muito demorado por conta da alta demanda. Não sei em quanto tempo ela irá ganhar outro".
Mesmo com a pouca idade, Sophie entende a importância de usar seus aparelhos auditivos para conseguir ouvir o conteúdo das aulas. "Eu gosto de usar meus aparelhos [na escola], porque consigo escutar bem. Eu gosto muito de estudar na minha escola e quero ser médica-veterinária quando crescer, para cuidar de animais", falou a pequena.
"Conseguir entrar na universidade não foi fácil"
Aluna do 4º período do curso de letras-libras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a deficiente auditiva Ana Raquel do Espírito Santo, de 20 anos, se vê como uma pessoa vitoriosa por ter ingressado na instituição na sua condição. "As pessoas precisam apoiar e motivar os surdos para que eles lutem pelos seus sonhos e não desistam. Eu sou um exemplo de quem conseguiu entrar na universidade, mas não foi fácil", declarou.
Como citado pela aluna, o apoio e a motivação de fato é importante para que uma pessoa com perda auditiva consiga entrar em uma universidade. Dados do Instituto Nacional de Ensino e Pesquisa (Inep) apontam que apenas 33 pessoas surdas se inscreveram para cursar uma graduação em Pernambuco em 2015.
Com o passar dos anos, o número cresceu. Em 2019, a quantidade de pessoas surdas inscritas passou para 123. Apesar do aumento parecer significativo, o dado ainda é considerado baixo comparado com o de outros alunos com deficiência, já que, neste mesmo ano, 1.101 pessoas com deficiência física estavam matriculadas em cursos superiores no Estado.
Para o professor de libras e coordenador do núcleo de acessibilidade da UFPE, Antônio Cardoso, para embarcar na universidade é necessário que as pessoas surdas tenham uma maior qualidade no ensino escolar, com pessoas capacitadas para atendê-las e que promovam a inclusão.
"É importante que haja uma fluência e capacitação dos profissionais para fazerem o uso de libras. Ainda não existem escolas onde porteiros, cozinheiros, professores, diretores e demais profissionais se comuniquem com os alunos com deficiência auditiva pela língua de sinais. É muito difícil depender do intérprete para tudo. E se ele for ao banheiro?", indagou o professor, que é surdo e foi um dos primeiros docentes com perda de audição a atuar na instituição. A entrevista concedida pelo professor contou com o apoio da intérprete Sueli Ramalho.
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Com surdez de grau considerado severo, Ana Raquel se comunica através da língua de libras. A jovem até chegou a utilizar aparelho auditivo na infância e parte da adolescência, mas deixou de fazer o uso após o equipamento quebrar. Ao lembrar da época escolar, a estudante se refere ao período como "horrível".
"Meus pais conversaram os professores informando que sou surda, mas mesmo assim eles me ensinaram com o mesmo método das crianças ouvintes. Eu não entendia nada durante a infância e adolescência", contou a jovem.
Mesmo já estando na universidade, Ana Raquel disse ainda encontrar dificuldades para assimilar os assuntos do curso. No entanto, ela conta se sentir acolhida pelos professores e colegas de classe. "Eu me sinto muito feliz ao fazer a graduação. A comunidade acadêmica e amigos me aceitam, respeitam e tentam me ajudar. Às vezes eles não têm conhecimento sobre a comunidade surda, mas se esforçam para me ajudar", contou.
De acordo com Antônio, apesar da escola ter um papel fundamental no ensino, também é importante que o aluno, principalmente na infância, conte com o apoio da família para desenvolver o aprendizado, principalmente se ele não for oralizado. "Quando os familiares exercem a comunicação, é mais fácil da criança surda chegar na faculdade, porque os ouvintes já têm a base da comunicação dentro de seus lares", disse o coordenador.
Lei Brasileira de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
No Brasil, o sistema educacional público ou privado, que abrange a educação básica ao ensino superior, é regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96). Em 2021, ela passou por uma mudança: a Lei 14.191 que trata da Educação Bilíngue de Surdos foi inserida a ela como uma modalidade de ensino independente - antes incluída como parte da educação especial. A educação bilíngue é aquela que tem a língua brasileira de sinais (Libras) como primeira língua e o português escrito como segunda.
Para o professor Antônio Cardoso, a nova modalidade representa um ganho para a comunidade surda. "Desde muito tempo reivindica a educação bilíngue de surdos no sistema educacional, que transformará o ensino das crianças surdas em todo o Brasil. Agora a educação dos deficientes auditivos se fomentará na questão linguística do surdo em todo o ambiente escolar", ressaltou.
Além disso, o coordenador acredita que a Lei irá efetivar a política pública de inclusão escolar. "Ela possibilita que os alunos surdos tenham um desenvolvimento de um ensino aprendizagem de forma eficácia assim como também enriquece o desempenho dos mesmos de desenvolver o senso crítico do mundo, pois ter a libras no sistema de ensino viabiliza o acesso dos mesmos ao conhecimento e posterior formação de cidadania com seus direitos e deveres", concluiu.
Apesar da lei sancionada, cabe à família do aluno escolher qual língua ele irá utilizar como primeira dentro da sala de aula.
Nota da Secretaria Estadual de Educação do Recife na íntegra
A Secretaria de Educação do Recife, através de suas escolas e creches, tem orientado as famílias sobre a importância da retomada das aulas presenciais nas escolas para todos os estudantes, inclusive com deficiência ou transtornos. A modalidade presencial, entretanto, é a mais recomendada porque garante o processo de aprendizagem em sua integralidade. O ensino remoto é uma alternativa para os estudantes em sistema de rodízio, quando não estão na escola, ou para os que, por decisão dos pais, não estão frequentando as escolas de forma presencial.
As escolas da rede municipal do Recife já retomaram as atividades presenciais, inclusive para os estudantes com deficiência ou transtorno. Os estudantes que não retomaram atividades presenciais decorrem de decisão da família. Independente da modalidade escolhida, sempre deve existir uma articulação entre a professora de sala regular e a professora do Atendimento Educacional Especializado (AEE). A Secretaria de Educação orienta os pais ou responsáveis que acionem a escola, inclusive, se necessário com apoio de técnicas da Gerência de Educação Especial que acompanham as escolas por territórios (RPAs), para que elas possam orientar os profissionais da educação da escola e, assim, garantir o atendimento especializado.
O programa de Ensino Híbrido da rede, o Educa Recife, realiza a transmissão diária de aulas por TV aberta e pela internet para todos os anos da educação infantil, ensino fundamental e EJA, inclusive com tradução simultânea em libras para estudantes surdos. A plataforma do Programa Educa Recife mantém todas as aulas e atividades gravadas e disponíveis para todos. Todos os estudantes com deficiência ou transtornos da rede do Recife estão recebendo tablets para auxiliar nas atividades remotas, inclusive com softwares para atender suas necessidades especiais. Atualmente a Rede Municipal de Ensino do Recife atende 104 estudantes surdos matriculados em 17 turmas de 9 escolas, onde são atendidos por 26 professores AEE.