No terceiro dia da série Fome, o JC mostra que mais de metade da população brasileira vive alguma situação de insegurança alimentar. Deixou de comer algum alimento, trocou por outro mais barato, pula alguma refeição ou até mesmo não come. Fatores econômicos como inflação alta, baixo crescimento econômico e desemprego têm contribuído para agravar o cenário. Nesta quarta-feira (22), último dia da série, vamos mostrar como sociedade civil e instituições contribuem para minimizar o problema e o que o Brasil precisa fazer para sair novamente do vergonhoso Mapa da Fome
Na casa de Rosália Ribeiro, 29 anos, faz tempo que a família come apenas o que o salário da empacotadora permite comprar. Com a inflação corroendo a renda, a feira escasseou. As carnes foram substituídas por salsicha, o iogurte praticamente saiu da lista e a troca de marcas é constante, em busca de opções mais baratas. Além da mudança de hábito alimentar, ela conta que alguns dias precisa recorrer à mãe e a amigos para que os filhos não fiquem sem comer.
Rosália e outros 116,8 milhões de brasileiros vivem uma situação de insegurança alimentar. É quando não se tem acesso pleno e permanente aos alimentos. Quando essa insegurança alimentar chega a um estado grave, configura que a pessoa está passando fome. A insegurança alimentar também cria o que Josué de Castro chamou de fome-gorda ou fome-oculta, em que as pessoas estão com sobrepeso e obesidade não por comer muito, mas por comer alimentos de baixo valor nutricional e ultraprocessados.
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), mostra que houve um aumento relevante do número de pessoas vivendo em situação de insegurança alimentar, a partir de 2018. Enquanto naquele ano 36,7% dos lares estavam nesta condição, no ano passado esse percentual disparou para 55,2%.
Do total de 116,8 milhões de brasileiros, 43,4 milhões estão em situação de insegurança alimentar moderada ou grave. Já 19,1 milhões estão em insegurança alimentar grave, ou seja, passando fome. Com emprego de carteira assinada há seis meses, a família de Rosália está em condição de segurança alimentar moderada. "Antes de conseguir essa oportunidade, que agradeço a Deus e aos donos da empresa, foram mais de quatro anos só pegando 'oia'. Contava com a ajuda da minha mãe e de amigos, além de receber o Bolsa Família de r$ 212 por mês. Agora que tenho um trabalho, o dinheiro é pouco porque o preço da comida, do gás (de cozinha) e da energia subiram muito. Quando pago o aluguel de R$ 300 e a luz de R$ 100, fica muito pouco para a alimentação e demais despesas", calcula.
Rosália conta que o mais difícil é lidar com as demandas da pequena Lorenna Vitória, 3 anos. "Ela fica pedindo lanche, iogurte, biscoito e é difícil dizer que eu não posso comprar. Faço de tudo para que, pelo menos, eles não comam puro. Não consigo comprar carne nem frango, porque está muito caro, mas tento trazer pelo menos salsichinha. Graças a Deus meus filhos não têm luxo e comem qualquer coisa que eu fizer. Os dois maiores, Vanderson Lucas e Maria Raquely, são mais compreensivos, porque sabem que a minha vida é lutar por eles. Meu sonho é dar uma vida melhor a eles, ter um trabalho que ganhe mais", diz a moradora da comunidade de Bola na Rede, no bairro recifense da Guabiraba.
O médico e especialista em direito à alimentação, Flávio Valente, alerta que o brasileiro está comendo cada vez pior e defende que o País precisa retomar sua dignidade, evitando que tanta gente passe fome. "Fome, desnutrição e má nutrição são manifestações de uma alimentação inadequada. Metade da população está comendo mal, uma alimentação de baixo custo, feita de produtos ultraprocessados ou uma alimentação repetitiva, com o consumo dos mesmos itens", destaca
Na avaliação do especialista, é preciso apoiar a agricultura familiar, que produz para o consumo interno, uma vez que os grandes produtores de alimentos do País apostam em commodities para atender o mercado internacional. "A situação é alarmante. Hoje todos nós estamos comendo, por dia, duas colheres de agrotóxicos. A situação de má alimentação não atinge apenas as populações mais pobres, a classe média também está em situação de insegurança alimentar", observa.
Valente lembra que Josué de Castro (maior estudioso da fome no Brasil e referência internacional) dizia que o combate à fome deveria ser tratado como uma política, não isoladamente. "Josué de Castro tinha uma clareza muito grande de que a alimentação tinha que ser tratada como uma política. Se você não tem uma política de alimentação e nutrição, você tem uma política da fome. A questão da fome não é apenas de produção de alimento, mas de acesso a emprego, a terra, saúde, a educação, a ciência", afirma.
O economista Sérgio Buarque diz que o Brasil vive uma situação de emergência e que é preciso revertê-la. "Vivemos um paradoxo hoje no País, quanto menos renda a gente gera (por falta de empregos) mais renda nós precisamos para transferir aos mais vulneráveis. É necessário ter políticas econômicas para voltar a crescer", afirma. Um exemplo dessa desestruturação está no aumento do desemprego e no descompasso entre o crescimento lento da renda em comparação com a escalada da inflação (veja arte abaixo).