A quem quer que se pergunte na Cidade Alta sobre o “Don Juan” de Olinda, este responderá: no Homem da Meia-Noite há algo diferente, mas ninguém consegue explicar o que é. Uma energia e um magnetismo quase que religioso, que traz, até, pessoas a orarem diante dele - e o temerem em outros casos. O calunga é um mistério por inteiro. Um personagem que veio do povo e volta para o povo, com dezenas de versões sobre seu nascimento há 90 anos, e que estaria, neste domingo (27), a abrir as portas do maior Carnaval de rua do mundo.
Mesmo guardado e de máscara, protegendo-se contra o coronavírus, o gigante mais galanteador de Olinda não foi abandonado pelos seus amantes. Se o Homem não vai até o povo, o povo vai até o Homem. Na quinta-feira pré-Carnaval, o movimento era intenso na abertura da sede onde ele mora, na Estrada do Bonsucesso. “Não temos mais todos os tamanhos, estão acabando”, responde o presidente da agremiação, Luiz Adolpho, a um folião que queria a nova camisa do bloco. “É nossa estratégia para manter a agremiação viva”, diz.
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Adolpho foi, inclusive, um dos cerca de 500 mil carnavalescos que o calunga conseguiu conquistar aos poucos. “Não entrei aqui pelo Homem, mas pelo meu pai e pela história de vida dele. Nunca fui um folião, era um observador, mas quis continuar o que ele realizava para honrar o nome dele, sempre com muita afetividade. Mas é impossível não começar a amá-lo também”, explica o filho de Tárcio Botelho, que durante 11 anos foi presidente do bloco.
Desde os 14 anos, Carlos Fernandes da Silva, 52 anos, tem como principal ofício de vida o de carregador oficial do Homem da Meia-Noite - o de padeiro, que assume no resto do ano, é secundário. Carlos já deu vida a dezenas de personagens, mas nenhum foi como o o “lorde” calunga, segundo ele. “É uma magia que não tem como dizer. Quando entro embaixo do boneco parece que não sou mais eu. Com ele, preciso sair cumprimentando as pessoas de casa em casa. O pessoal é muito fã dele. Quando ele anda, arrasta aquela multidão como um imã”, descreve.
Uma dessas é a aposentada Eliane Bernardina, 65, que mora na casa de muro colado à do Homem. “Todo ano eu ia atrás dele. Ficamos muito emocionados quando ele vai sair, dá uma alegria. No sábado, chegam para participar famíliares e amigos, é um clima gostoso, todo mundo animado, esperando ele sair. Meu avô foi um dos fundadores do Homem e do hino dele, então o amor é muito grande”, revela.
"As pessoas olham para ele, choram, querem tocá-lo e segui-lo. Eu costumo dizer que o desfile do Homem é quase uma romaria religiosa, porque uma hora depois da orquestra passar tem pessoas seguindo, sem música. Não é uma agremiação carnavalesca, simplesmente, é algo mais", descreve Adolpho.
A disputa é grande para participar de seu espetáculo, segundo o maestro Carlos Rodrigues da Silva, de 56 anos. "Hoje todos os músicos de Olinda querem ter o privilégio de tocar no Homem", diz ele, que há 30 anos comanda a orquestra que hoje tem 60 integrantes, mas já tocou "aos trancos e barrancos" com 12. "Mesmo com a experiência que eu tenho, arrepia. Ano passado fiz o trajeto do desfile tocando baixinho com meu instrumento. Este ano, novamente, estou triste."
Assim como no último ano, Carlos não verá em 2022 o olhar emocionado do público admirando o gigante, apenas erguerá o Homem para as comemorações online de Carnaval, que será transmitida neste domingo. Desde novembro, antes de qualquer outra, a agremiação se posicionou afirmando que novamente não desfilaria ao priorizar a vida.
O jornalista e pesquisador de frevo Amílcar Bezerra pontua que o Carnaval de Pernambuco tem uma tradição comunitária, o que faz com que sua ausência seja muito mais dolorosa. "As agremiações são de familiares, amigos, pessoas que trabalham juntas, é uma tradição antiga e ininterrupta. Vai-se criando essa cultura, esse sentimento comunitário que não acontece nos outros períodos do ano, é no Carnaval que isso se ritualiza. Então, quem sofre mais é quem faz o Carnaval, mais que todo mundo.
Mas como o calunga e seus apaixonados poderão sorrir novamente nos próximos carnavais após dois anos e um luto que também é coletivo no Brasil? Adolpho responde: "Quando morria alguém da família, minha mãe chegava para ele e perguntava se as minhas irmãs podiam ir para uma festa. Ele olhava para ela e dizia: a vida continua. Isso é muito especial. Morreram tantas pessoas, ainda morrem, mas a vida tem que continuar. Se Deus quiser, se essa pandemia não existir mais, o Homem vai vir muito forte no ano que vem."