Um quilo de fubá para fazer cuscuz, além de um tomate, duas cebolas, um pepino e duas cenouras. Com esses ingredientes, Rosemere Pires dos Santos, 38 anos, improvisou o almoço para ela, nove filhos e dois netos. Sua família é o retrato da extrema pobreza em Pernambuco, Estado que tem a quarta maior população do País vivendo abaixo da linha de pobreza, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Divulgado nesta semana, o Mapa da Nova Pobreza revela que 50,3% dos pernambucanos têm renda per capita familiar abaixo de R$ 497 por mês. Com 9,6 milhões de habitantes no Estado, dá mais de 4,8 milhões de pessoas nessa situação. No País esse índice é de 29,6% (62,9 milhões de brasileiros).
Além de estar entre as unidades da federação com maior contingente de pobres (atrás apenas do Maranhão, Amazonas e Alagoas), Pernambuco foi o Estado em que mais pessoas entraram nesse grupo durante a pandemia de covid-19.
"O incremento da pobreza em Pernambuco entre 2019, antes da pandemia, e 2021 foi de mais 8,1%, o maior aumento do País. Nacionalmente esse índice cresceu 4,54%", explica o diretor da FGV Social e coordenador da pesquisa, Marcelo Neri.
"No Brasil, nesse mesmo período, foram 9,6 milhões de pessoas que cruzaram a linha de pobreza para baixo. É quase a população de Portugal", observa Marcelo Neri. É o maior índice identificado desde o início da série histórica, em 2012.
"Pernambuco foi o Estado onde mais cresceu a pobreza. Isso surpreendeu. Fiz um estudo um ano e meio atrás para a OCDE. Em 2020, o Estado se destacou na melhora da pobreza e na piora nos ingredientes trabalhistas", diz o pesquisador. "Preocupa pois sabemos das potencialidades do Estado, mas é um dado que chama a atenção", comenta Marcelo Neri.
Rondônia, Espírito Santo e Bahia foram os outros três Estados com maior crescimento da população vivendo abaixo da linha de pobreza (6,31%, 5,92% e 4,90%, respectivamente). O estudo usa dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do IBGE.
DIFICULDADES
Rosemere não consegue um trabalho formal porque precisa cuidar dos filhos. Os R$ 782 que recebe do Programa Bolsa Família, do governo federal, não são suficientes para comprar comida e bancar outras despesas. A família mora numa palafita no bairro dos Coelhos, área central do Recife, uma das comunidades mais carentes da capital pernambucana.
"Tenho 13 filhos, mas vivendo comigo são nove, o mais velho tem 17 anos e o mais novo 8 meses. Tento dinheiro extra como ajudante de pedreiro ou faxineira. Mas só quando eles estão na escola ou na creche. Com a pandemia piorou mais, quase não aparece trabalho", lamenta Rosemere.
No casebre de madeira, um beliche é dividido por quatro adolescentes, duas em cada cama. Na pequena cozinha, um tijolo vira fogão, como fazem os detentos nos presídios.
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"Não tenho vergonha de pedir. Sempre tem um vizinho ou alguém da comunidade para ajudar. O dinheiro do Bolsa Família não chega no fim do mês. Se não fosse a boa vontade das pessoas, passaríamos fome. O que mais dói é um filho querer um biscoito, uma comida e você não ter. Fico com o coração apertado", diz Rosemere.
Distribuição da população pobre em Pernambuco
Ao observar a distribuição da população pobre no Estado, o estudo da FGV mostra que o Agreste pernambucano é a região que concentra mais pobres: 59,62%. Significa que nessa região, de cada dez pessoas, seis estão vivendo abaixo da linha de pobreza. Em seguida, aparecerem a Zona da Mata (54,89%), Sertão (54,19%), o Grande Recife (45,16%) e por fim a capital (36,19%).
"Recife tem mais de um terço da população abaixo da linha de pobreza", destaca Marcelo Neri. "Durante a pandemia, foi na capital onde houve o maior salto em direção à pobreza. Cresceu 11,34% entre 2019 e 2021", informa o economista da FGV. A cidade tem cerca de 1,6 milhão de habitantes.
Adriano Gomes da Hora, 38 anos, sofre os efeitos da pandemia. Era funcionário de uma empresa terceirizada que colocava lonas plásticas nos morro do Recife. Com a chegada da covid-19, ficou desempregado. Agora passa os dias puxando uma carroça por bairros de classe média da capital. Para conseguir R$ 10, precisa juntar 100 quilos de papel ou papelão.
"Só pagam R$ 0,10 pelo quilo. E se o papelão tiver molhado cai para R$ 0,5. É muito pouco. Trabalho de domingo a domingo, de 5h até 22h, num tem isso de descansar. Três filhos dependem de mim. Eles não pediram para nascer, tenho que conseguir comida para levar para casa todos os dias", diz Adriano.
Na carroça, ele colocou duas placas. "Se puder me ajude com alimento e trabalho", diz uma delas. "Posso limpar uma caixa d'água, tirar metralha, arrancar mato do quintal", explica Adriano, que prefere não arrumar emprego formal.
AÇÕES
"Estamos no nível mais alto de insegurança alimentar. A inflação também preocupa, está alta e precisa ser domada. Tem que combater o desemprego. São muitos desafios", ressalta Marcelo Neri. "Estamos numa montanha russa. O aumento da pobreza é reflexo da instabilidade não só causada pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, mas também por políticas públicas que deveriam estabilizar e não exacerbar o cenário", diz Marcelo Neri.
"A pobreza está numa situação crítica. Importante não deixá-la virar crônica. Em 20 anos, entre 1993 e 2014, conseguimos reduzi-la em 75%", afirma o pesquisador, destacando ser otimista.
"Pernambuco tem feito boas ações na educação, no ensino médio com escolas integrais. Certamente é uma política que vai ajudar no futuro. Tem também o Porto Digital, que coloca o Estado numa posição boa em termos de novas tendências. Com políticas públicas consistentes, locais e estaduais, a curto e longo prazo, esperamos que a pobreza se dissipe", diz Marcelo Neri.
Morando há quase uma década embaixo de um viaduto numa das principais avenida da cidade, a Agamenon Magalhães, o biscateiro Fernando Victor de Melo, 49 anos, espera mesmo por mudanças. "Minha filha nasceu aqui. Está com 9 anos. Meu sonho é ter um canto só nosso. Mas a cada ano acho mais difícil disso acontecer".
A pesquisa completa pode ser conferida aqui.
Veja o ranking da pobreza no Brasil
*População com renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais
Maranhão - 57,90% da população em situação de pobreza em 2021
Amazonas - 51,42%
Alagoas - 50,36%
Pernambuco - 50,32%
Sergipe - 48,17%
Bahia - 47,33%
Paraíba - 47,18%
Pará - 46,85%
Amapá - 46,80%
Roraima - 46,16%
Ceará - 45,89%
Piauí - 45,81%
Acre - 45,53%
Rio Grande do Norte - 42,86%
Tocantins - 33,59%
Rondônia - 31,65%
Espírito Santo - 27,20%
Minas Gerais - 25,25%
Rio de Janeiro - 22,81%
Goiás - 22,52%
Mato Grosso do Sul - 20,95%
Mato Grosso - 20,24%
São Paulo - 17,85%
Paraná - 17,60%
Distrito Federal - 15,70%
Rio Grande do Sul - 13,53%
Santa Catarina - 10,16%
* Fonte: FGV Social, elaboração a partir da PNADC/IBGE